próximas exposições
exposições atuais
2024
2023
2022
2021
2020
2019
2018
2017
2016
martinat + sassi: marieloisa1003
13 dez 2020 – 13 fev 2021
texto thais rivitti
projeto especial, são paulo
-
A Galeria Leme e a Central Galeria têm o prazer de apresentar um projeto especial ocupando o Edifício Marieloisa com obras de José Carlos Martinat (Lima, Peru, 1974) e Rodrigo Sassi (São Paulo, 1981). Cada qual a seu modo, os dois artistas recorrem à paisagem urbana na composição de seus trabalhos, criando um diálogo direto com o centro da cidade e com o prédio que os recebe e dá título à exposição.
-
Imaginem que estamos bem aqui, no Edifício Marieloisa, no momento de sua construção, na década de 1950. Caminhando poucos quarteirões chegaríamos ao Largo de Santa Cecília, onde fica a famosa igreja com obras do pintor Benedito Calixto, inaugurada em 1901. Na esquina com a Rua Sebastião Pereira veríamos a requintada Clipper, primeira loja de departamento da cidade e primeiro estabelecimento a ter uma escada rolante. Seguindo o passeio, encontraríamos também boates famosas, cinemas luxuosos, casas de chá e outras lojas sofisticadas. Aos olhos mais atentos não passariam desapercebidos os edifícios art deco e os palacetes hoje tombados pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Nem o primeiro edifício modernista construído em 1927.
Diante do prédio Marieloisa conseguiríamos de fato voltar no tempo, pois a reforma cuidadosa empreendida pela CAVN preservou os detalhes da época – até as pastilhas da fachada foram substituídas por outras iguais às originais –, acrescentando apenas os benefícios das tecnologias mais modernas.
A combinação entre o charme de outrora e a vitalidade do presente, como se vê nos novos restaurantes, bares e atividades culturais que surgiram nos últimos anos, trouxe novos habitantes para a região e deslocou novamente o interesse para essa área da cidade.
As obras aqui expostas mostram um pouco como dois artistas encaram as transformações do meio urbano, como as vivenciam e, principalmente, como fazem dessas mudanças um assunto para seus trabalhos.
José Carlos Martinat, artista peruano representado pela Galeria Leme, dedica-se a pensar sobre a passagem do tempo e suas marcas no contexto urbano. Seus trabalhos pretendem apreender e conservar um momento, destacando-o do fluxo constante de destruição – e construção –em que as grandes cidades estão imersas. As delicadas películas soltas no espaço são fragmentos da visualidade urbana. Extraídas diretamente de muros da cidade por um processo de transferência, aparecem como reminiscências do passado. Tipos diversos de letras, logos e símbolos formam uma iconografia complexa, uma linguagem codificada. Essa passagem sem mediação do contexto público para o interior do espaço expositivo dá outro significado ao material apropriado pelo artista. No ambiente artístico, protegido, tendemos a apreciá-lo segundo as normas e o repertório da História da Arte. Na rua, muitas vezes, ele é visto como produto de vandalismo, sinalização improvisada ou propaganda sem interesse.
Rodrigo Sassi, nascido em São Paulo e representado pela Central Galeria, utiliza em seus trabalhos materiais da construção civil como ferro, madeira e concreto. Mantém com a cidade essa afinidade orgânica de elementos constitutivos. Seus ossos e sua carne são feitos da mesma matéria. As obras de Sassi aludem à arquitetura moderna; assumem a cor cinza, sem acabamento ou disfarces. Formam-se a partir da manipulação de materiais resistentes, numa possível alusão ao dia a dia duro dos habitantes da metrópole. Têm um equilíbrio tenso que está sempre por um fio e diz muito sobre uma convivência inevitavelmente no limite da violência e da opressão. Mesmo assim, ou, melhor dizendo, por isso mesmo, uma improvável beleza surge das obras, dando ensejo a uma camada menos imediata da percepção da vida em São Paulo. As obras de Rodrigo respondem à sua maneira à pergunta do dia: “Existe amor em SP?”.
// Thais Rivitti
vistas da exposição
tudo o que você me der é seu: prosas de mulheres na arte popular
05 dez 2020 – 30 jan 2021
curadoria renan quevedo
-
A Central Galeria tem o prazer de apresentar uma exposição dedicada às artistas populares brasileiras. Intitulada Tudo o que você me der é seu: prosas de mulheres na arte popular, a mostra é realizada em parceria com o projeto Novos Para Nós, do pesquisador Renan Quevedo, e reúne obras de quatro brasileiras de diferentes origens, gerações e repertórios: Efigênia Rolim, Lira Marques, Nilda Neves e Rosana Pereira.
-
Antes de tudo que vem a seguir, houve silêncio.
É louvável notar que, nos últimos anos, as instituições de arte tenham revisto seus históricos e esforços a respeito da diversidade em seus acervos. A fim de reconhecer locais de fala e trazer novas vozes argumentos para uma discussão mais democrática e pagar a vergonhosa dívida secular com grupos invisibilizados, projetam exposições em que o norte é o equilíbrio. A mostra Tudo o que você me der é seu – prosas de mulheres na arte popular é uma delas; traz as obras de quatro mulheres de diferentes origens, gerações e repertórios.
Faço minhas as palavras de Paulo Rezutti: “Não! As mulheres não precisam de mais um homem para falar por elas. A mulher brasileira tem voz própria há anos“¹. Aqui, oferecemos o espaço para essas artistas cujas obras falam por si mesmas. Com o Novos Para Nós, me proponho a contar as histórias que presencio e escuto sobre a obra e a vida, que nunca se desassociam, dos artistas populares (utilizarei este termo, embora com ressalvas). Ainda que 77% dos artesãos brasileiros sejam mulheres, a agenda artística e cultural se mantém distante dessa realidade. É um apagamento? Na exposição, buscamos contextualizar as histórias vividas, inventadas e testemunhadas por Nilda Neves, Lira Marques, Rosana Pereira e Efigênia Rolim, quatro artistas com produções permeadas por símbolos de identidade, consistência e particularidades.
Fazendo uso de barro, papel, plástico, tinta, tecido e metal, entre tantos outros materiais, as quatro artistas tecem narrativas. De acordo com Walter Benjamin (1892-1940), a prática da arte de narrar está ligada às mais antigas formas de trabalho manual². Ao passo que os homens saíam para caçar, as mulheres ficavam responsáveis pela produção de cestaria, bordado, tapeçaria e trançado, além da propagação para as próximas gerações, trocando experiências.
Nilda Neves (1961-) é natural do sertão de Botuporã (BA). Bisneta de tupis-guaranis, estudou contabilidade e foi professora de matemática e comerciante, entre outras profissões. Em São Paulo, virou dona de bar. Os calotes a forçaram a ser manicure, o que só fazia a clientela gritar de dor. Nilda conta, gargalhando, que foi colocada para cortar cabelo – “e eu nunca tinha cortado nem cabelo de rato”³. Como pagamento de uma dívida, ganhou três DVDs: dois não funcionaram e o terceiro mostrava um religioso lendo um livro. A situação, que a deixou revoltada, também trouxe ideias: “Vou escrever o meu livro”. Uma sequência de páginas com histórias, crônicas e pensamentos sobre a vida tomou forma. Com a falta de dinheiro, Nilda se viu forçada a fazer o desenho para a capa. As pessoas gostaram do que viram dentro e fora do livro e a incentivaram no novo ramo.
Nilda, então, começou a pintar telas com temáticas referentes à vida no sertão, retratando tempos e costumes: cangaceiros, retirantes, atividades manuais, animais, paisagens, comidas, profissões, vínculos afetivos, conflitos e folclore. Lançou mão de pinceladas arrastadas e secas, que preenchem a tela e dão origem a texturas e padrões. O bom humor, uma das características mais marcantes no trabalho de Nilda, divide espaço com lamentos, introspecções, solitudes e vazios. “Me chamavam de artista plástica, mas eu dizia que não era porque achava que esse termo era pra quem fazia arte com plástico”, conta rindo. “O que as pessoas acham feio, eu acho bem bonito.”⁴
Lira Marques (1945-), nascida em Araçuaí (Vale do Jequitinhonha, MG), tem um diálogo com a natureza em diversas formas. Sabe e entende que veio da terra e que para ela voltará. Sua mãe fazia bonecas de pano e presépios de barro para presentear os vizinhos, e assim foi despertada a curiosidade de Lira: ainda criança, começou a fazer pequenas esculturas com cera de abelha, posteriormente se dedicando à cerâmica. Os desenhos em papel e pedra – que hoje são seu carro-chefe – só surgiram em 1994, após fortes dores nos braços. Hoje, Lira coleciona diferentes tons de pigmentos minerais que encontra pela região e aplica em seu trabalho, além de investigar e acumular um conhecimento inesgotável sobre a cultura popular, o comportamento, a música, os habitantes e sobretudo a vida dos que lá persistem.
A série aqui exposta foi batizada por Lira de Meus bichos do sertão. São representações feitas em barro com traços da economia e da estética rupestres: figuras bípedes e quadrúpedes que se assemelham a aves, répteis e anfíbios e, frequentemente, são híbridos entre real e imaginário. Os animais são definidos por seus bicos, penas, chifres e rabos; ora sozinhos, ora acompanhados por seus ovos, índices da flora e minerais. Em determinados momentos, Lira agrupa elementos em formas ovaladas que sugerem exposição em pedras e pastos, reclusão em cavernas e buracos; ou, ainda, os escava como uma arqueóloga da própria vida e história. A aridez estética é marcada pelo relevo da matéria-prima e reforçada pelos ângulos agudos das extremidades dos bichos. Podem ser “mansos, mas também ariscos”⁵ – está pronta para soltá-los em troca de proteção e adiamento dos apocalipses.
Também do Vale do Jequitinhonha, Rosana Pereira (1988-) nasceu em Caraí (MG) com uma bolinha de barro nas mãos. Filha, neta, bisneta, tataraneta de ceramistas – e aqui nos perdemos na incerteza de sua árvore genealógica, mas seguros da atividade quase tricentenária na região –, desde pequena foi iniciada na modelagem do barro. A produção de Rosana é diretamente ligada à produção de seu avô, Ulisses Pereira Chaves (1922-2006), celebrado como um dos maiores escultores brasileiros por Burle Marx⁶ e Lélia Coelho Frota.
Influenciada esteticamente por Ulisses, Rosana adquire temática própria e flexiona a rigidez das figuras do avô com movimentos e interações entre os corpos. De poucas palavras e grande timidez, encontrou na escultura a melhor forma para se comunicar. Suas obras mostram figuras antropozoomórficas, com corpos humanos e rostos de animais. A figura feminina, em sua grande maioria, traja um vestido de noiva, e, a masculina, terno completo para o casamento. Subvertendo a rígida tradição local, há uma inesperada relação entre os personagens: os femininos têm o poder e o controle da cena. São eles quem rastejam, caem, fraquejam, obedecem, são carregados e fragilizados. Rosana, a mais jovem presente na exposição, resume a série com: “Faço isso porque a mulher também é importante”⁷, levantando uma bandeira não de superioridade, mas de igualdade entre os gêneros.
Efigênia Rolim (1931-), natural de Abre Campo (MG), iniciou sua produção artística em Curitiba (PR). Conhecida como “Rainha do Papel de Bala” há mais de 30 anos, um fato mudou toda a sua história: andava pela rua quando viu um objeto brilhante no chão. Surpresa, se abaixou para pegá-lo; era “apenas” um papel de bala. Pensou nas relações que estabelecemos com pessoas e concluiu que, enquanto o papel tivesse uma função embrulhando o doce, despertaria interesse por parte de alguém. Chamou-o, então, de “mísero caído”. Começou a recolher todos os que via pela frente, pensando: “Se conseguir um por dia, no final do ano tenho 365” – enquanto as pessoas só a chamavam de louca. “Ninguém achou que eu fosse vingar.”⁸
Os papéis invadiram suas vestimentas e, juntamente com outros materiais considerados “lixo”, são matérias-primas das esculturas, compondo também apresentações e poemas. “As pessoas ficam impressionadas com o trabalho que tenho para fazer minhas peças, mas não há nada que eu goste mais do que isso. É preciso de imaginação e querer fazer.”⁹ Marcados pelo processo de acúmulo, destruição, construção, ressignificação e bricolagem, seus trabalhos apresentam narrativas oniscientes inspiradas em contos de fada. Seus personagens e histórias transitam entre o real e o extraordinário, frequentemente manipulados com o recurso pedagógico da repetição. Apresentamos a inédita série Natureza racional, justificada pela artista com: “Cansei de falar com os homens, agora vou falar com os animais”¹º. Autointitulada Guardiã do Mundo, com a voz no presente e seu eco no futuro, Efigênia nos provoca a respeito da sustentabilidade e das próximas etapas da humanidade ao interferir no tamanho real dos homens e bichos, propondo novas dimensões e relações entre eles.
Nilda e Lira se voltam para o meio de criação rural como base para a formação de seus discursos, enquanto Rosana e Efigênia projetam narrativas com preocupações a princípio urbanas, embora certamente de interesses universais. O equilíbrio também ocorre por meio das intersecções, similaridades e dissonâncias de suas falas: feminino, cotidiano, deslocamento, força, tempo, igualdade, resiliência, ancestralidade e consciência ambiental, entre tantos outros temas. A distância acadêmica revela uma crescente pesquisa de matérias e experimentações técnicas em busca de um apuro narrativo e estético.
As histórias contadas através dos trabalhos presentes na mostra foram construídas com base na observação do cotidiano vivido ou percebido, dos costumes e da sensibilidade. São narrativas que moram nas quatro artistas e as mantêm vivas. Já os objetos perdem o valor contemplativo e podem assumir caráter de devoção, evocando suas crenças, sonhos, pensamentos e questionamentos. Recusando serem caladas, as ideias que propagam se baseiam na perpetuação, preservação e libertação de suas raízes, do cotidiano e do futuro que agoniza e sufoca.
Se “por muito tempo na história, ‘anônimo’ era uma mulher”¹¹, como escancara Virginia Wolf (1882-1941), queremos que as prosas das mulheres sejam notadas, que suas vozes sejam ouvidas e que possamos nos inspirar com suas histórias. É preciso visitá-las e revisitá-las para que grupos periféricos ganhem um novo e merecido espaço na noção de arte brasileira, em nossas agendas e em nossa sociedade, abandonando as margens. Tudo o que você me der é seu é uma generosa troca, e somos nós que ficamos com o presente.
// Renan Quevedo
_______________
1. REZZUTTI, Paulo. Mulheres do Brasil: A história não contada. 1. ed. Rio de Janeiro: LeYa, 2018, p. 17.
2. BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, v. 1, p. 197-221.
3. Em entrevista para o curador em 3 de outubro de 2019 em visita ao ateliê.
4. Idem.
5. Em entrevista para o curador em 30 de agosto de 2020 em visita ao ateliê.
6. FROTA, Lélia Coelho. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro – Século XX. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005, p. 403.
7. Em entrevista para o curador em 31 de agosto de 2020 em visita ao ateliê.
8. PINHEIRO, Dinah Ribas. A viagem de Efigênia Rolim nas asas do peixe voador. Curitiba: Edição do autor, 2012, p. 21.
9. Em entrevista para o curador em 4 de maio de 2018 em visita ao ateliê.
10. Idem.
11. WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 62.
tour virtual
vistas da exposição
no presente, a vida (é) política
12 out – 28 nov 2020
curadoria diego matos
-
Curadoria de Diego Matos
Com obras de Bruno Baptistelli, Clarice Lima, Dora Smék, Fernanda Gassen, Fernanda Pessoa, Gabriela Mureb, Gustavo Torrezan, Marília Furman, Paul Setúbal e Rafael Pagatini
-
Possibilidade é conteúdo, potência é energia e poder é forma. Chamamos possibilidade um conteúdo inscrito na constituição de um mundo presente, imanência do possível”. ¹
Vasculhar as evidências materiais do passado, colocando-as em questão; ressignificar símbolos, normas e tradições, dando visibilidade ao corpos e fazeres que estão à margem; desalienar as práticas cotidianas, buscando espaços de ativação coletiva; requalificar a noção de trabalho como vivência emancipatória, batalhando contra a precarização e a hiperconexão controlada; questionar formas de poder opressoras, respondendo aos desejos também do outro; evidenciar sujeito e corpo implicados no cotidiano, contribuindo para uma reestruturação do corpo social e, enfim, tomar de volta o caráter público da arte. Estas são possibilidades de ação presentificadas pela produção de dez artistas reunidos na exposição coletiva No presente, a vida (é) política.
Nela, a arte é protagonista dos temas emergenciais da vida democrática, além de dispositivo qualificador das implicações do corpo e do indivíduo no tecido social. Reside a ideia de que o trabalho de arte é um agente de mudança que batalha pela desautomação da linguagem e dos afetos, podendo nos ajudar a clarear os impasses do momento e até mesmo imaginar novos entendimentos para o futuro que se avizinha.
Dez artistas — Bruno Baptistelli, Clarice Lima, Dora Smék, Fernanda Gassen, Fernanda Pessoa, Gabriela Mureb, Gustavo Torrezan, Marília Furman, Paul Setúbal e Rafael Pagatini – confabulam pesquisas, estratégias, ensaios, enunciados, registros e formas de ação conscientes no presente, refletindo permanentemente sobre a possibilidade de vida politizada, coletiva e libidinosa, que não se deixa findar e que não espera pelo futuro prometido das narrativas da religião purificadora, da bonança econômica neoliberal e da crença velada nas formas limitadoras de operar a política democrática e liberal. Portanto, entende-se que a arte é um caminho para vincular à vida sua qualidade essencial de política.
Tal percepção nasce das provocações advindas de reflexões contemporâneas, especialmente da escrita potente de Franco Berardi. Em seu texto, ao falar de nossa época como momento posterior ao futuro sonhado pelas construções utópicas do século passado, ele nos traz o conceito de futurabilidade: “a multidimensionalidade do futuro, a pluralidade dos futuros inscritos no presente e, também, a composição mutável de intenção coletiva” ² . De certa maneira, todos os 24 trabalhos dispostos ao longo da galeria fundamentam-se em experiências pensadas por meio da reinvenção contínua do convívio e da sobrevivência no tempo presente. Portanto, são especulações para uma futurabilidade, ensejando constantemente a iminência do possível.
Se estamos vivendo as consequências catastróficas da aceleração do antropoceno – pandemia pode ser exemplo disso –, pode ser pelos desafios do pensamento e do fazer artístico que conseguiremos destituir o sentido de impotência diante da crise permanente em que vivemos mergulhados. Os mecanismos da arte podem, inclusive, reavivar conflitos, dissensos e antagonismos necessários à esfera pública, algo muito bem pontuado por Chantal Mouffe ao trazer para o debate público uma percepção agonística da democracia. ³
Aliás, a produção contemporânea em arte pode e deve ser lugar da construção de experiências desconfortáveis aos consensos políticos. E é sobre esse desconforto que em certa medida os trabalhos apresentados se assentam.
É importante pontuar que a exposição toma forma no já histórico edifício de esquina do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento de São Paulo (IAB-SP), lugar que guarda significativas memórias de um lastro cultural de resistência e inovação na cidade. Ocupando o subsolo e o mezanino da edificação, contaminando áreas comuns e sinalizando para a rua, algumas obras acabam por se relacionar de maneira física e simbólica com o local; outras, por sua vez, ganham potência pelo contexto ou promovem atritos com a história política e cultural que dali emana.
// Diego Matos
_______________
1. Duas publicações do filósofo e escritor, professor e agitador cultural italiano Franco “Bifo” Berardi foram lançadas recentemente no país pela Ubu Editora: Depois do futuro e Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. É da primeira delas a epígrafe: BERARDI, Franco. Depois do futuro. São Paulo: Ubu Editora, 2019. p. 179.
2. Ibid. p. 182.
3. Essa percepção do político como expressão incontornavelmente antagonista, polarizado e plural comparece de maneira instigante na publicação traduzida para o português dessa filósofa e cientista política belga: MOUFFE, Chantal. Sobre o político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.
tour virtual
vistas da exposição
terra
22 ago – 03 out 2020
curadoria simon watson
-
A Central Galeria tem o prazer de apresentar “Terra”, exposição coletiva curada por Simon Watson. A exposição conta com obras de três artistas emergentes – João Trevisan, Leandro Júnior e Lídia Lisboa – explorando o espírito do sertão brasileiro.
-
A exposição reflete uma exploração curatorial que se iniciou há dois anos em julho de 2018. Uma viagem de 20 horas realizada ao vale do Jequitinhonha, no interior de Minas Gerais, para conhecer o ateliê do pintor e escultor Leandro Junior assim como uma visita ao Quilombo de Cuba onde o artista é professor de artes voluntário de jovens e crianças. A região é notável de diversas maneiras: uma paisagem montanhosa, austera, acidentada e seca povoada por habitantes amigáveis, cujo espírito descomunal não é saciado pelas circunstâncias econômicas claramente difíceis da região. É uma região com profunda ligação com a história do Brasil. Lugar onde portugueses primeiro instalaram minas para exploração de metais preciosos, abastecidas por incontáveis gerações de africanos escravizados. Após esta primeira e breve visita ao vale do Jequitinhonha, ficou claro que ainda havia muito a se aprender sobre a região, as pessoas e sua história. Uma profunda fascinação com a região levou a uma exploração de artistas que abordam temáticas do sertão assim como leituras sobre a região, incluindo uma das mais famosas obras da literatura brasileira, o marco de 1956 de Guimarães Rosa Grande Sertão: Veredas, que tira força de um lugar com beleza crua, terra de um povo orgulhoso e diverso com uma história complexa.
Em “terra” as obras estão dispostas numa leitura da esquerda para a direita, em uma temática alegórica do dia para a noite, ao longo das três paredes principais da Central Galeria: a manhã é representada por vídeo, desenhos e esculturas de Lidia Lisboa; a tarde é representada por uma série de pinturas de Leandro Junior; e a noite é retratada por pinturas, video performance e instalação de João Trevisan.
Metaforicamente a exposição começa de madrugada com o video performance “Alvorecer” de Lidia Lisboa, realizada na Estação da Luz. Num monitor de vídeo na parede esquerda da galeria, descobrimos Lisboa vestida com uma das suas esculturas de tecido com dois metros e meio ‘’Casulo” . Sua performance é ondulante, sugerindo um bicho-da-seda gigante em uma jornada pela estação de trem do século XIX. Misteriosas, lúdicas e sobrenaturais, suas esculturas “Casulo” são uma versão suave de sua mediação ao longo da vida sobre o tema dos formigueiros encontrados em todo o Brasil. De muitas maneiras, seu foco é uma reflexão sobre comunidade, sobre a construção da comunidade, sobre as várias maneiras como uma unidade comunitária é concebida. Lidia Lisboa é natural de Guaíra, no Paraná. Os temas de suas obras refletem as pessoas e a paisagem de sua criação. Suas esculturas de argila feitas à mão, chamadas de “Cupinzeiro”, fazem referência a grande parte da paisagem vista em toda a América do Sul (bem como na África e na Austrália), em que os campos dos fazendeiros são pontilhados com montículos de terra vermelha, às vezes em escala de outeiros, todos feitos por colônias de cupins. Às vezes incrustadas com cacos de vidro e outras vezes com metal ou conchas, essas esculturas têm uma qualidade estranha e maravilhosamente perturbadora.
Ao longo da parede de cimento áspero da galeria estão alinhados os retratos pintados por Leandro Júnior de uma série de pessoas de costas que parecem olhar para o céu azul do futuro. Júnior é um pintor e escultor figurativo que se inspira na cultura forte e na intimidade cultivada no vale rural do Jequitinhonha, onde a maior cidade tem uma população de 7.000 habitantes. É um artista emergente que vem desenvolvendo sua pintura e escultura utilizando o barro como principal matéria-prima. Suas obras têm características únicas, o artista extrai o barro de um dos quilombos da região. Pintados com argila liquefeita que enfatiza a memória afro-brasileira do Vale do Jequitinhonha, seus retratos recentes tocam notas de tristeza e empoderamento - bem como a alegria absoluta de estar vivo em uma comunidade rural pobre, mas autossustentável.
A noite é narrada na terceira e última parede da exposição em uma série de pinturas óleo sobre tela, um vídeo performance e uma escultura robusta e articulada feita de dormentes de madeira e dobradiças de ferro do artista João Trevisan. Sua mais nova série de sete pinturas da série ‘’Intervalos’’ tem uma qualidade meditativa noturna e um preto rico que parece aludir ao espaço profundo. Em ensaio publicado no início do ano intitulado “O Ritmo Da Noite” de Ulisses Carrilho, o curador e crítico carioca refletiu sobre os “Intervalos” de Trevisan, que para ele remetem ao crepúsculo dos hábitos , repetição e ritmo. A exposição se encerra com uma video performance de Trevisan, um devaneio poético ao longo de uma ferrovia que termina em fogo. Para aqueles de nós com memórias de infância do som distante de um trem, é também sobre os confins da memória.
// Simon Watson
tour virtual
vistas da exposição
joão trevisan: das noites uma livre sensação
04 abr – 09 mai 2020
texto ulisses carrilho
-
A Central Galeria tem o prazer de apresentar a exposição Das noites uma livre sensação, com texto crítico de Ulisses Carrilho.
João abre a exposição com a instalação Desfechar para Espertar com corpos articulados, porém apresentados de maneira estática. Para isso, é escolhida uma posição, dentre as outras 8 possíveis, para manter-se imóvel, forma que se repete nos 4 corpos que ocupam um espaço de 7m corridos.
A instalação é formada por 4 estruturas semelhantes, feitas a partir de madeira escura gasta pelo tempo, assim como suas pinturas. Também das pinturas vem a atmosfera noturna criada pela utilização do preto, mostrando uma memória que ali se esconde. Essas madeiras tomam a característica de corpos. Todo o material utilizado foi coletado após ser abandonado ao longo de ferrovias, nas quais Trevisan costuma caminhar.
Trevisan exibe um grupo de trabalhos desenvolvidos a partir de 2018 que deram origem à série Intervalos, que se desdobra nas esculturas e serve como estudo para a compreensão de outras séries apresentadas na exposição.
As pinturas de Trevisan são sombrias e com pouca luz. Nelas existe uma aura que estende-se sobre as cores e, ao caminhar à sua volta, percebe-se que a forma preenchida pela cor desaparece e volta a aparecer num jogo óptico, delicado e firme.
A repetição de elementos, como é vista nos dormentes deitados, é utilizada como recorte imaginativo que inspira as pinturas. Trevisan considera extremamente valiosa a observação da disposição dos materiais em ferrovias, feitos com distâncias iguais e simétricas, porém afetados pela força do trem que as atravessa e faz com que as estruturas se distanciem ou mudem de lugar.
-
O ritmo da noite
Ulisses Carrilho“If all of the people who go to the museums could just feel an earthquake. Not to mention the sky and the ocean. But it is in the unpredictable disasters that the highest forms are realized.”
Walter de Maria, On the Importance of Natural Disasters“We have different mountains & rivers, but we share the same sun, moon, & sky.”
Poema chinêsFiliado às ideias da arte da terra, do minimalismo, e da arte conceitual, o artista estadunidense Walter de Maria, despontou no final de seu texto On the Importance of Natural Disasters (1960) que é nos disastres que as maiores formas são realizadas. De certo, ao lembrar de trabalhos paradigmáticos como o “Earth Room” (1968), podemos afirmar que o desejo do artista está localizado na realização formal de uma determinada situação – mesmo que a escala pudesse, à primeira vista, soar impossível ou impraticável.
Atento para sua menção ao céu e ao oceano na frase seguinte – sentença menos dramática ou espetacular, que deve ser considerada de extrema importância. Tanto na sentença de De Maria, quanto no poema chinês, há uma sugestão de paisagem. Naquilo que apresenta-se sobre nós – a imensidão do céu –, quanto naquilo que marca nossa mirada ao horizonte, onde nossa vista alcança – o também imenso oceano. A partir desta linha, horizontal, organizam-se a ideia de paisagem e a leitura ocidental. Num exercício de horizontalidade, por meio da justaposição de palavras, organiza-se qualquer texto. Se na leitura este exercício de ordenação é corriqueiro e óbvio, no entrecruzamento dos trabalhos de João Trevisan esta é também uma verdade. Na instalação apresentada, nas pinturas expostas e na combinação dos objetos reside uma ideia de arranjo sustentada, com todo seu peso, na linha horizontal.
Faz-se responsável, no entanto, um preâmbulo: o artista relaciona as formas pintadas por ele a suas caminhadas no entorno das linhas ferroviárias – um exercício de deambulação contínuo e linear, marcado pela ideia de hábito, repetição e, em última instância, ritmo. Sensível a esta afirmação do criador, ouso contrapô-la. Não é um motivo, uma vontade de representação, que move o pintor. Se apresentam-se nas pinturas, como uma possibilidade de leitura por aquele que faz flanar seus olhos na superfície de uma tela exposta, estão mais marcadas ainda na fala do artista: as razões pelas quais João Trevisan trabalha as soturnas matizes que colorem esta mostra não operam num desejo de representação da forma geométrica. As formas na pintura de Trevisan carregam um ethos daquele que pinta pelo próprio desejo de pintar.
Em última instância, este texto objetiva investigar o desejo do artista. Aventar hipóteses sobre o que move João Trevisan – quais são suas intenções, com o que se preocupa e as razões pelas quais se envolve em processos materiais para dar conta de questões conceituais que lhe são caras, importantes – apresenta-se como uma possível estratégia. Tal qual nas pinturas da série Intervalos, apresentam-se aqui, enumeradas, justapostas e enfileiradas hipóteses e possíveis relações do trabalho do artista com outros trabalhos e poéticas na história da arte – relações tão legítimas, quanto fantasiosas. As hipóteses objetivam ser lidas no intento de provocar o espectador a investigar ritmo a partir da repetição formal dos paralelepípedos representados pelo artista; quais desventuras há por trás do seu gozo com a escala de suas instalações; como Trevisan opera a ideia de posição em sua investigação formal; e o último lado deste quadrado: do humor, da erótica e da sugestão de grandezas que apresentam-se nas suas escolhas de títulos.
Ritmo
A ideia de ritmo não carece ser explicada ao espectador. Quiçá é ele, o ritmo, a causa da livre sensação que reside no título da mostra. Por campos cromáticos soturnos, que sugerem o fim do dia, o chegar da noite e o adentrar na madrugada, as pinturas são sombrias – com aura e pouca luz. “Ao caminhar à sua volta, percebe-se que a forma preenchida pela cor desaparece e volta a aparecer num jogo óptico, delicado e firme.” Por toda a história da pintura, a fruição do espectador no espaço em que a obra é apresentada gerou percepções singulares. Trevisan, no entanto, intenciona este jogo de ilusão. Filia-se então às investigações fundamentais do neoconcretismo de Willys de Castro. É na baila dos “Objetos Ativos” de Willys que surgem as “Madeirinhas” de Trevisan. Uma das características principais dos “Objetos ativos” é que operam de modo similar à poesia neoconcreta: não é possível definir com muitas certezas se ali opera primordialmente uma investigação da linguagem ou da forma. Assim como não é possível afirmar se Trevisan objetiva em “Sequência de coisas’ lançar mão da escultura ou da pintura, senão de ambos.
Escala
“Essas madeiras tomam a característica de corpos”, afirma o artista sobre a instalação que inaugura a mostra. O material utilizado é coletado após ser abandonado ao longo de ferrovias, nas quais Trevisan costuma caminhar. Seu interesse sobre esta matéria resulta do encontro inaugural com estruturas usadas da malha ferroviária – já deslocadas, descarrilhadas. Em “Desfechar para Espertar”, os corpos articulados são apresentados estáticos. Para isso, é escolhida uma posição, dentre as outras 8 possíveis, para manter-se imóvel, forma que se repete nos 4 corpos que ocupam um espaço de 7m corridos. Trevisan exibe um grupo de trabalhos cuja pesquisa começara no ano de 2018 e deu origem à série “Intervalos”, que se desdobra em esculturas. Ao artista, serve como estudo para a compreensão de outras séries apresentadas na exposição. Opera no máximo, com a instalação – em pinturas, objetos e títulos, opera no mínimo.
Posição
Não apenas “Sequência de coisas” é uma sequência de coisas na mostra de João Trevisan. Esta é também uma explicação plausível para o processo de composição de “Desfechar para espertar”, “Ensaio sobre a curva” e na série de “Paquerinhas”.. A investigação poética de Bas Jan Ader, artista holandês que com maestria investigou os limites de seu corpo em relação com o mundo, pode sugerir o que considero marca primordial dos trabalhos de João Trevisan. Em última instância, Ader especulou sobre a força que possibilita que um determinado objeto ocupe um determinado lugar no espaço: a força da gravidade, em que tudo aponta para a terra. Pendulando na ponta de um galho de árvore, tombando num rio, soçobrando sobre um cavalete, caindo e caído, provocando a própria queda e deixando-se cair, Bas Jan Ader pode sugerir-nos que os interesses de João Trevisan sobre a posição de seus trabalhos instalativos e objetuais envolvem não apenas o impacto visual que suas peças têm. Diminutos ou monumentais, cada objeto revela à retina o seu próprio peso.
Títulos
“Dignidade não dói. Honestidade não fere. Namorar faz bem”. Com estas palavras, José Leonilson inscreve três linhas sequenciadas em “O Desejo é um lago azul”, o desenho de uma escada em meio à superfície de um papel. Na repetição da forma das “Maquetinhas” de Trevisan, percebe-se uma vontade do artista em usar a cor nesta sucessão de formas contínuas, como quem ousa iludir. Se a simetria dos volumes representados em óleo sobre tela é evidente, o que o artista faz em “Maquetinhas” é instigar o espectador a perceber uma mesma área com outra temperatura. Não apenas por como os volumes operam – em perspectiva, como numa escada – mas por uma sugestão de percepção outra realizada pelos matizes que usa. Se a inscrição de Leonilson – namorar faz bem – alude à erótica dos “Afetinhos”, “Namoradinhos” e “Paquerinhas”, é bem verdade que há outra marca em várias dessas palavras: ao usar o diminutivo – no português, comumente ganham os anasalados sufixos –inho e –inha – o pintor sugere um tamanho diminuto para esses objetos. Tal ideia interessa pois opõe-se à escala monumental de suas instalações e ao ethos do minimalismo estadunidense. Nos “Afetinhos”, nos “Namoradinhos”, nas “Escadinhas”, nas “Madeirinhas” e nas “Maquetinhas”, há um eco do diminutivo das célebres “Droguinhas”, de Mira Schendel. Na vontade de representar o inapreensível, nas Droguinhas e nas têmperas da pintora, sobram o vácuo verbal de Mira Schendel no limite metafísico do indizível.
——-
A segunda epígrafe deste texto é parte de um antigo poema chinês. Foi marcada nas caixas enviadas pelo governo japonês que levaram os suprimentos doados às vítimas chinesas desta pandemia mundial, tempo no qual é inaugurada esta mostra. Os objetos estão instalados em uma galeria sem a segurança do encontro com um público numeroso. O que sabemos ao certo é que, para aqueles que a puderem ver, este será um encontro íntimo, corpo a corpo. O mesmo sol, a mesma lua e o mesmo céu. Quanto pode a arte frente ao inevitável? Quanto podem os artistas, que tanto dão a ver, frente ao invisível? Criar, imaginar e realizar, seja frente ao absurdo, seja frente ao sensível, não são privilégios dos artistas. E mais: quanto podemos nós frente ao invisível, ao impronunciável, ao estranho e ao desconhecido? Quanto podemos frente à falta de sentido? Quanto e o quê podemos frente ao que nos escapa? “Que tempos são esses/ Quando falar sobre flores é quase um crime./ Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?”
tour virtual
vistas da exposição
efeito tyndall
08 fev – 21 mar 2020
curadoria julie dumont
-
Curadoria de Julie Dumont
Com obras de Adriana Affortunati Martins, Alexandre Brandão, C.L. Salvaro, Jurgen Ots e Nicolas Bourthoumieux
-
Observado pela primeira vez por Michael Faraday em 1857 e estudado pelo físico inglês John Tyndall, o efeito Tyndall é um efeito óptico de espalhamento da luz que ocorre quando há a dispersão da mesma pelas partículas coloidais, deixando visíveis partículas de poeira suspensas no ar através de uma réstia luminosa que atravessa as árvores, por exemplo.
Na exposição coletiva homônima a esse efeito, Adriana Affortunati Martins, Alexandre Brandão, C.L. Salvaro, Jurgen Ots e Nicolas Bourthoumieux tornam, cada um na sua linguagem, o invisível visível. Nas obras dos artistas, os objetos, as formas e a matéria ganham uma presença própria e integram sistemas formais alternativos cuja coerência está desvinculada dos seus significados iniciais para evidenciar uma ressonância humana, social e poética que ultrapassa a forma.
Assim, o artista belga Jurgen Ots abre uma brecha temporal com o vídeo “Are we Arc?”. Na obra, folhas amareladas de cadernos de jogos de xadrez, garimpadas em feiras da Europa, desfilam, lembrando momentos de mudanças políticas e territórios desaparecidos como da antiga Rússia ou Iugoslávia. O ritmo acelerado do desfile das imagens enfatiza a contraposição de épocas, criando um quase afresco de cores congelando um horizonte temporal utópico.
O resgate de elementos do passado caracteriza também a obra de C.L. Salvaro, embora sem manipulação ou, pelo menos, quase. Na instalação “Retrospecto”, o artista parte de vestígios de uma casa e transpõe ao espaço expositivo um pedaço de história do Brasil e das vivências dos ocupantes de um lar, aproveitando simplesmente da disponibilidade de elementos encontrados e das narrativas que podem existir neles, fora de qualquer urgência contemporânea. Agindo como uma espécie de arqueólogo do presente, o artista resgata na instalação camadas de tempo e raízes de uma casa onde se votou no Collor, junto a uma pistola, como testemunham elementos aparentes da instalação. O olhar de Salvaro cristaliza assim um momento, evidenciando partes da obra, escondendo outras e deixando a matéria se expressar.
Em diálogo à pesquisa de Salvaro, Adriana Affortunati Martins revela em “Helena” a beleza poética da deliquescência, com uma obra feita de tecidos alterados por uma longa exposição aos elementos da natureza no quintal de sua casa. Os farrapos coloridos adquirem a aparência de pintura abstratas, sustentados por um quadro de madeira. No trabalho da artista, o tempo segue solto, os objetos apodrecem e a beleza é interior. Assumindo a imperfeição da vida – e a inevitabilidade do passar do tempo – a obra de Adriana Affortunati reivindica a sua efemeridade através do vento e da chuva que realizaram o trabalho junto com a artista.
Partindo da matéria bruta, as obras de Alexandre Brandão, por sua vez, apontam a matéria e a tensão que surgem quando ela está sendo manipulada. A luz, o calor, as reações com o passar do tempo viram assim ferramentas de desenho, como na série “Estudo Cítrico” composto por letras de um alfabeto minimalista inspirado pelo alfabeto em relevo criado por William Moon. O hiato entre a substância e o objeto construído se manifesta também na obra “Tectônica”, na qual o artista inverte a passagem do tempo e cria fissuras na realidade usando técnicas ancestrais de construção para criar uma instalação lembrando solos desérticos.
O impacto do antropoceno e a ação do humano no seu ambiente também permeiam a obra do francês Nicolas Bourthoumieux. A percepção do movimento e do tempo, a luz, o sublime da natureza e a sua relação com a condição humana se expressam assim em uma escultura esguia que deixa adivinhar um sol dourado destacado no fundo azul escuro de uma pintura. A nossa percepção muda conforme nos relacionamos com a obra, que convida à contemplação em um lugar onde as noções espaço-temporais desaparecem. Em diálogo a ela, uma série de fotos de uma paisagem lunar e de luzes de velas em movimento volta à questão da tensão entre o natural e o artificial, entre a mudança de um estado ou espaço para o outro e a percepção que podemos ter deles.
Atuando como antropólogos, os artistas de O Efeito Tyndall oferecem para a matéria resíduos e escombros da nossa civilização em uma nova ressonância. Sem usar artifícios, eles evidenciam não somente os elementos usados, mas também as suas propriedades metafóricas, da mesma forma que a linguagem escrita contém, além da seu significado primeiro, ideias maiores que ultrapassam a mera descrição. Nas suas obras, o tempo, a relação entre o humano, a natureza e o manufaturado aparecem como as camadas deixadas pelas marés, em arranjos intuitivos fugindo da monumentalidade para privilegiar a presença individual das formas e do que existe além das aparências.
Guiados pela proposta, dirigimos a nossa atenção para a simplicidade, para a essência do que nos cerca, para a poesia presente na decadência, no momento que precede a desaparição final do que é descartado. Escapando da maquina pós-modernista, talvez podemos pausar a velocidade de um mundo cada vez mais digital, obcecado pelo novo, pelo limpo e no qual o passar do tempo é visto como uma fatalidade indesejável. Então paramos para contemplar a poeira dançando, antes dela pousar e desaparecer, absorvida pelo mundo que a cerca.
// Julie Dumont
tour virtual
vistas da exposição
condo: adrián balseca
01 fev – 21 mar 2020
-
A Central Galeria tem o prazer de receber em seu espaço expositivo a Galeria Madragoa, de Lisboa, como parte do projeto Condo. Retornando a São Paulo em formato mais ambicioso, o Condo apresenta nesta edição 16 galerias internacionais em 6 diferentes espaços de São Paulo.
———
For Condo São Paulo 2020 Madragoa present Phantom Recorder, an installation by Adrián Balseca hosted by Central Galeria.
Phantom Recorder is a collaborative project with Kara Solar, an initiative of the Latin American Association for Alternative Development in alliance with the Achuar Nationality of Ecuador. The work revolves around a device designed to collect the sounds produced by different living organisms on the banks of the Bobonaza River, in the provice of Pastaza.
Informed by post-colonialism, Balseca’s work is a symbolic inversion of the celebrated voyage in Werner Herzog’s film Fitzcarraldo (1982), where – in the depths of the Amazon jungle – the protagonist attempts to enchant the natives by playing the arias from the opera Caruso on his gramophone.
Adrián Balseca (Born 1989, Quito, Ecuador. Lives and works in Quito). Recent solo exhibitions include The Unbalanced Land, Madragoa, Lisbon (2019); Estela blanca, Ginsberg Galeria, Lima (2019); Grabador fantasma, CCA, Quito (2019); Hora- men, Museo de Arte Precolombino Casa del Ala- bado, Quito (2017); The Skin of Labour, Madra- goa, Lisbon (2016). Selected group exhibitions include: osloBIENNALEN, First Edition, Oslo (2019); Museo Amparo, Puebla (2019); BIENAL SUR, Centro Cultural Parque de España, Ro- sario (2017); CEAAC, Strasbourg (2016); CAC- Quito (2016); EDOC 15, Quito (2016); Museo de Antioquia, Medellin (2015); Cisneros Fontanals Art Foundation Grants & Commissions Program Exhibition, Miami (2015); In 2013, he won the inaugural Premio Brasil – Emerging Art Prize, at the Center for Contemporary Art Quito (CAC) and in 2014 he received the Premio Paris at the 12th International Cuenca Biennial: Leaving to return. He was awarded the annual Grants & Commissions Program 2015, at the Cisneros Fontanals Art Foundation (CIFO).