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gustavo speridião: sobre poesia


23 nov 2022 – 21 jan 2023
texto clarissa diniz

  • A Central tem o prazer de apresentar Sobre poesia de Gustavo Speridião, novo artista representado pela galeria. Com ensaio crítico assinado por Clarissa Diniz, a exposição é formada por um políptico de seis pinturas em que o artista aborda o plano pictórico a partir de sua tridimensionalidade – os trabalhos são montados em bases de madeira e concreto, formando um hexágono no centro do espaço positivo.

    Ao convidar o público para entrar nessa arena, onde é possível circundar as pinturas e ver seu verso, Speridião recusa a frontalidade absoluta do plano, explorando sua ilusão espacial. O uso da palavra também desempenha um papel central nesses novos trabalhos, como é recorrente em sua prática. "O texto, aqui escrito ao contrário, fala da rebeldia como uma parte muito forte e transformadora da essência humana. A rebeldia é amiga da arte. A poesia como meio de transformação e de transgressão." defende o artista.

    Gustavo Speridião nasceu no Rio de Janeiro em 1978, onde vive e trabalha. Mestre em Linguagens Visuais pela UFRJ (Rio de Janeiro, 2007), já realizou individuais em: Galerie Les Filles du Calvaire (Paris, 2020); Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (Rio de Janeiro, 2016); Galeria Mario Schenberg/Funarte (São Paulo, 2015); Maison Européenne de La Photographie (Paris, 2013); entre outros. Entre as coletivas, destacam-se: Frestas - Trienal de Artes, Sesc Sorocaba (Sorocaba, 2017); South-South: Let me begin again, Goodman Gallery (Cidade do Cabo, 2017); Soft Power - Arte Brasil, Kunsthal KAdE (Amersfoort, 2016); Imagine Brazil, mostra itinerante que passou por Astrup Fearnley Museum (Oslo, 2013), MAC Lyon (Lyon, 2014), Museum of Art Park (Doha, 2014), Instituto Tomie Ohtake (São Paulo, 2015) e DHC/ART (Montreal, 2015); Parasophia, Kyoto Municipal Museum of Art (Kyoto, 2015); 12. Biennale de Lyon (Lyon, 2013); entre muitas outras. Suas obras integram importantes coleções públicas como: Astrup Fearnley Museum (Oslo), Inhotim (Brumadinho), MAM Rio (Rio de Janeiro), MNBA (Rio de Janeiro), MAC Niterói (Niterói) e MAR (Rio de Janeiro).

  • Keep The Buzz Alive [versão resumida]
    Clarissa Diniz

    Dois anos atrás, Gustavo Speridião pintou A MARCHA SEM FIM DOS POETAS REBELDES (2020), um díptico que continha em seu útero a instalação MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, agora parida e em pé na individual Sobre poesia.

    Neste intervalo, o artista suprimiu os artigos e as preposições do título anteriormente pensado (“a” e “dos”), bem como transformou a ênfase de seu enunciado, agora menos interessado no protagonismo dos autores, “os poetas”, do que na agência da própria poesia.

    Os cirúrgicos cortes operados por Speridião sobre a formulação retiram seu quase axioma do campo dos bordões para inscrevê-lo, com mais fugacidade, no território da poesia. Prescindindo de qualquer função conectiva entre os substantivos que habitam os títulos das obras, o artista produz um gutter [1] semântico que decerto faz seu anterior lema parecer, agora, uma espécie de haikai.

    Não à toa, dando continuidade às investigações linguísticas que levaram o artista a elaborar as mostras sobre desenho (2007), sobre fotografia e filme (2013) e sobre pintura (2021) e na atual exposição, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE se filia ao poético, modo linguístico que tem na cesura uma de suas tradicionais características.

    Termo que Freud utilizaria para descrever a relação de simultânea continuidade e ruptura que se dá no nascimento, a cesura é, todavia, um conceito originário do campo da poesia. Indica uma pausa intencional no interior do verso: um corte tão rítmico quanto sígnico.

    Parida de sua versão causal – na qual palavras linearmente organizadas indicam relações de um pertencimento exclusivista, isto é, de propriedade (“a marcha” é, afinal “dos poetas”) –, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, rebento cesurado da obra de 2020, explora o corte poético também no espaço, organizando-se em seis faces igualmente consecutivas e descontínuas.

    O que rompe o cárcere dos sentidos unidirecionais é a própria irrupção do espaço por entre sua pintura-enunciado: uma pausa duplamente métrica que é, afinal, um projeto de fuga ao – ou desconstrução do – controle das significações, corporeidades, políticas e representações.

    SEM FIM

    Como trotskista, Speridião não só aposta, como principalmente enxerga a “revolução permanente”. Sua paixão pela impermanência das nuvens e os desafios da representação que nela estão implicados tem, evidentemente, raízes políticas de grande amplitude e profundidade: o compromisso ético em não encerrar ou considerar como ex nihilo as conquistas das tantas lutas, atento que está à necessidade de seguir revolucionando em razão da infinitude das urgências sociais e da consciência de que não é possível delimitar, posto que nos ultrapassa, quando a luta começou.

    Nesse sentido, ao longo de sua profícua obra, inúmeras são as situações nas quais Gustavo tem produzido continuidades, como agora acontece com MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, cuja dimensão circular faz o poema tornar-se infindo tal como a marcha e a rebeldia por ele invocadas.

    Numa justaposição circular, a instalação torna multidirecionalmente reversível a leitura do poema. Além de ser lido em frente e/ou verso, é também passível de, espiralando a cesura, ser recombinado pelo movimento de nosso corpo, que pode retornar ou ricochetear a si mesmo e às palavras, produzindo poemas como “REBELDE MARCHA POESIA SEM FIM”, “FIM REBELDE SEM POESIA MARCHA”, “POESIA SEM MARCHA FIM REBELDE”, dentre inúmeras possibilidades que têm o poder de transmutar substantivos em verbos ou adjetivos, and back again.

    MARCHA

    A instalação agora montada em Sobre poesia não só nos convida a caminhar em seu entorno e a atravessá-la, como também foi produzida em marcha.

    Deitadas sobre o chão durante dias, as telas agora tornadas imponentes presenças verticais foram, antes, pisoteadas. Sem que essa caminhada tenha qualquer ambição performativa da parte do artista, ela todavia constitui o projeto estético da obra: em MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, o caráter descentrado do poema e da espacialidade da instalação se faz também na multiplicidade de direções e intensidades de seus traços, manchas e grafias.

    Andando em círculos sobre as telas, foi com os pés e com outras partes do corpo – de modo a desbancar o canônico protagonismo da “mão do artista” – que o carvão, a tinta e o verniz foram se impregnando nas pinturas junto à ação do tempo, que trouxe sua colaboração na forma de poeira, vento e decantação.

    A sofisticada trama de artifícios e dispositivos composicionais empregados pelo artista informa a sensação de estarmos diante de uma pequena massa de acontecimentos, presenças e subjetividades.

    MASSA

    Intitulada Como Me Tornei Bípede ou Os Problemas Políticos de Ser Bípede (2007), a dissertação de mestrado de Speridião partia do tema das duas pernas que nos servem de apoio para introduzir-nos numa de suas principais estratégias estéticas, em tudo irmanada à máxima marxista-trotskista da revolução permanente – a “fragmentação permanente”: “se faço o papel de dezenas de autores diferentes que se contradizem uns aos outros, e mesmo a si próprios, o Bípede também foi um multiplicar constante podendo dizer que temos Doze Bípedes, todos incertos e vacilantes, todos contraditórios entre si”[2].

    Posto que as pernas agem conjuntamente, sua singular conformação nos corpos humanos tem a capacidade de nos fazer experimentar a dimensão de multiplicidade que é inerente à unidade. Um interesse sociopolítico ao qual se soma o fascínio estético de Speridião pelos kouroi: tradição da estatutária grega que, em sua representação monumentalizada de corpos masculinos, os apoia sobre um par de pernas em posições distintas, com um pé à frente do outro, num passo interrompido pela representação que o congela entre o ir e o vir, isto é, na condição de liminaridade da passagem.

    Produzir diferença na própria inerência, tal como a cesura no interior de um verso, é uma contribuição da arte no âmbito da forma política. Como autor, Speridião busca fazê-lo ao incorporar a dialética dentro sua própria obra, antecipando, já no processo de criação, a usualmente posterior confrontação com a diferença. Uma operação de dialética intrínseca que se torna, assim, uma estratégia construtiva.

    Para tanto, além de provocar e evidenciar cortes, cesuras e gutters, o Bípede-Gustavo – um fragmentador de si mesmo – tem performado diferentes projetos estéticos numa mesma obra, intencionalmente tornando algumas de suas pinturas tão geométricas quanto gestuais, tão expressivas quanto conceituais, tão planejadas quanto acidentais.

    A voluptuosa convivência entre diferentes vocações estéticas numa mesma obra por vezes precipita a sensação de estarmos diante do trabalho de dois ou mais autores, evocando presenças díspares que não convivem em equilíbrio, mas em movimento.

    É o que acontece em grande volume em MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, cuja caminhada multidirecional produziu manchas desordenadas a ponto de ficcionalizarem a existência de uma massa de pés, mãos, corpos. Percepção reforçada, ainda, pela fisicalidade heterotópica das seis pinturas que, de pé, nos rodeiam como se estivéssemos dentro de uma roda de ciranda ou de pogo, abraçando-nos em sua performatividade igualmente ameaçadora.

    Para Speridião, ou a revolução é das massas, ou não será revolução.

    REBELDIA

    Gustavo Speridião é um militante socialista que tem, nas ruas, uma de suas principais escolas de arte. Para o artista, as técnicas de manifestação ou de autodefesa são não apenas estratégias de luta, como também de elaboração estética.

    Vem da experiência da luta popular a relevância que a ideia de barricada tem tomado em sua obra, do que MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE é um claro exemplo, na medida em que faz uso de soluções construtivas do tipo do it yourself para botar essa instalação-trincheira no mundo.

    Como um elogio à rebeldia, a obra é, ela mesma, um exercício de memória e de fabulação de táticas de confronto popular e saberes insurgentes como a marcha, a faixa, o lambe, a roda, a pichação ou a barricada, alguns dos procedimentos mobilizados em sua criação.

    Fortemente inspirado pela autodefesa dos moradores de Pinheirinho (São Paulo) contra a violenta reintegração de posse sofrida pela comunidade em 2012, a obra de Speridião parece compromissada com o que, como um lembrete, evoca uma discreta anotação de um de seus muitos cadernos: “keep the buzz alive”.

    A revolução permanente pede, afinal, uma rebeldia sem fim.

    POESIA

    A teologia da ordem que identifica a ideia moderna de Estado se constrói também por meio da linguagem, essa admirável capacidade expressiva e representacional que, embora irredutível à comunicação, tem sido continuamente achacada pelo capitalismo cuja eficácia produtivista não a tem poupado.

    A poesia, por sua vez, é uma forma de linguagem cujas estratégias de enunciação permitem e, mais do que isso, fomentam o descompromisso criador e crítico com a teologia da ordem. Fazer poesia é, como salienta Speridião, imaginar e experimentar outras formas de organização que, desde os sentidos e as formas, são também sociais e políticas.

    Aprender a fazer uso de gutters, cesuras e outros cortes é, portanto, uma arma contra a fantasiosa estrutura discursiva do poder que, ficcionalizando a ordem social e política, nos quer fazer acreditar que não há mais brecha, fresta ou mesmo vácuo passível de ser ocupado ou tomado como porta de entrada para a implosão da própria estrutura que os produz e os mantém à sombra.

    CINZA

    A despeito de sua monumentalidade, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, essa espécie de pedagogia poética para uma permanente rebeldia política, não se faz de forma estridente ou espetacular. A econômica sisudez de sua “massividade objetual” [3] é pouco sedutora; nada tem da luminosa nitidez do galante mundo digital.

    Ao contrário de uma luminosidade que é puro brilho, a luz que cruza e constitui a instalação é por ela mesma em grande parte absorvida, tomando as seis pinturas como rebatedores através das quais o que ilumina já o faz numa atmosfera opaca, contida como o preto e o branco que matizam a intensidade gestual da obra.

    MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE é, por isso, eminentemente cinza como uma nuvem pesada, tomada pelo estado liminar de vir a ser chuva e, quiçá, tempestade. Tal qual as nuvens, sua cinzura não é da ordem do pigmento, mas da passagem de cor fabricada no desfazimento do carvão cujo negrume, de tão pisado, acinzentou-se.

    Cromaticamente rebaixada, a instalação é, como circunscreveu o próprio artista, um “épico melancólico”. É pouco triunfal em sua verve revolucionária, mas suficientemente rebelde a ponto de tornar-se poesia e, através dela, não se deixar abater pelo desolado lamento das batalhas perdidas.

    Como afetuosamente contestam os versos de Amor Cinza, de Matheus Aleluia – cuja voz grave e hipnótica Gustavo Speridião escutava enquanto caminhava pintando sua MARCHA SEM FIM... –, “na linha do horizonte tem um fundo cinza (...) / não aceito quando dizem / que o fim é cinza / eu vejo o cinza / como um início em cor / (...) vamos festejar o cinza com amor”.

    _______________

    1. Em 2020, Speridião criou a pintura GUTTER, termo inglês que designa calha, canaleta, rego. Enquanto nas histórias em quadrinhos gutter indica justamente as linhas que separam os diversos campos da narrativa – os entre-espaços que estruturam uma página de gibi, por exemplo –, na poética do artista o vemos assumir cada vez mais protagonismo, por vezes expandindo-se a ponto de tornar-se maior do que o campo ao qual deveria servir como delimitação.

    2. Excerto da dissertação do artista. Disponível em: http://serbipede.blogspot.com/

    3. Guilherme Bueno em Escaramuças pictóricas (2011). Texto crítico da mostra Fora do plano tudo é ilusão, realizada na Anita Schwartz, no Rio de Janeiro.

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