04 fev – 11 mar 2023
texto victor gorgulho
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Temos o prazer de apresentar O Duplo, a primeira exposição de Dan Coopey na Central Galeria. Empregando técnicas milenares da cestaria e materiais como sisal, juta, bananeira e lúpulo, o artista exibe uma série inédita de trabalhos escultóricos que estabelecem uma estreita relação com o corpo.
Nascido em uma cidade rural no interior da Inglaterra, Dan Coopey tem um interesse por tecelagem e cestaria que remonta à própria infância e se expande para uma pesquisa contínua. A cestaria, afinal, é considerada a tecnologia mais antiga da humanidade, como o próprio artista enfatiza, e está presente em diversas culturas ao redor do mundo. A obra de Coopey parte dessas tradições ancestrais, mas ao mesmo tempo destitui seu caráter utilitário para imbuir aos objetos um estranho aspecto híbrido, algo que não é propriamente cesta, nem tecido.
Usando uma variedade de fibras naturais, seu processo de trabalho se dá de modo íntimo e intuitivo, sem esboços ou projetos. O artista permite que as esculturas ganhem forma organicamente à medida em que realiza os trançados, respeitando as limitações do corpo e a ação da gravidade. Para além de revisitar técnicas quase esquecidas, esse processo parece também querer resgatar a experiência tátil em um mundo dominado pela visão. "Ao tecer, o corpo precisa fazer um grande esforço para tensionar as fibras contra sua vontade e, em troca, as fibras criam tensão nas fibras do corpo. Os cordões agem como tendões que conectam todos os músculos", afirma o artista. "Ao longo desse processo, o objeto torna-se uma extensão do corpo, seu duplo".
Dan Coopey nasceu em Stroud, Reino Unido, em 1981. Vive e trabalha entre Londres e São Paulo. Formado em Belas Artes pela Goldsmiths College (Londres, 2004), já participou de residências artísticas como: Fibra (Bogotá, 2018), Pivô (São Paulo, 2016-2017) e Acme Fire Station (Londres, 2012-2015). Suas exposições individuais recentes incluem: Brunches no Wonderwerk, Espaço C.A.M.A (São Paulo, 2021); Sunday, Galeria Estação (São Paulo, 2019); Interiors, Pivô (São Paulo, 2017); Dry, Kubikgallery (Porto, 2017); lalahalaha, Belmacz (Londres, 2015). Entre as coletivas, destacam-se: The Immortal, Elizabeth Xi Beuer Gallery (Londres, 2022); Beuys Open Source, Belmacz (Londres, 2021); Mingei Now, Sokyo Gallery (Kyoto, 2019); (o), Galeria Leme (São Paulo, 2018); The Peaceful Dome, The Bluecoat (Liverpool, 2017); Neither, Mendes Wood DM (Bruxelas, 2017). Seus projetos futuros neste ano incluem individuais em OV Project (Bruxelas) e Mackintosh Lane (Londres).
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A trama do mundo: fios soltos e reflexões afetivas sobre a prática da tecelagem na obra de Dan Coopey
Victor Gorgulho1. Distanciando-se de produções contemporâneas que – justamente por conta da ampla gama de possibilidades temáticas e materiais que os dias de hoje nos oferecem – a obra de Dan Coopey baseia-se única e irrevogavelmente sobre a prática da tecelagem, algo que remonta à infância do artista, nascido em Stroud, uma pequena cidade rural no interior da Inglaterra. Por lá, a prática da tecelagem ocupa um lugar central na cadeia de produção artesanal e industrial da cidade, moldando significativamente a paisagem local – de modo tanto literal quanto subjetivo. A cidade (e seus moradores, portanto), conectam-se em uma trama de fios e fibras que traçam uma peculiar cartografia social e afetiva na geografia da cidade.
2. Ainda que fontes históricas apontem para distintas temporalidades e localizações geográficas pouco precisas, há uma espécie de consenso, digamos, de que a tecelagem situa-se entre algumas das práticas artesanais mais antigas e difundidas em todo o mundo, ocupando tanto uma imprescindível dimensão utilitária para inúmeros povos da Antiguidade para cá, quanto se afirmando, também, em uma singular dimensão de expressão artística, atravessando séculos e civilizações, em cestarias e obras escultóricas (por que não assim denominá-las?) que ultrapassavam e expandiam um tanto a dimensão cotidiana/vernacular destes objetos.
3. Por osmose ou mesmo por um insuspeitado inconsciente interesse do próprio artista, Coopey acabou por internalizar o saber da cestaria e da tecelagem, de sua infância aos dias de hoje, com uma tamanha peculiaridade que acaba por informar um tanto acerca de sua produção artística atual. No grupo de obras reunidas na presente exposição, torna-se evidente (ainda que não de maneira explícita ou obviamente literal), uma prática que conjuga tanto o saber rigoroso do manuseio de diferentes tipos de fibras naturais – como a juta, o sisal, a fibra de bananeira e mais – através de uma deliberada condução em nada empírica ou racional do ato de tecer estes fios. Há, aqui, um ponto de partida definido para o início dos trabalhos de Coopey em seu ateliê. Não há, no entanto, um projeto ou croqui que busque esboçar um resultado previamente pensado, resoluto. Tecer, talvez, seja como caminhar, ainda que o percurso – curto ou longo, como for – se dê, provavelmente, no mesmo lugar de produção do artista.
4. É recorrente a discussão em torno do gesto e do uso da força e da expressão corporal de qualquer artista que esteja a produzir, especialmente nos campos da pintura e escultura, notadamente. Na contramão deste consenso, são inúmeras as práticas artísticas que também demandam a força física de quem as realiza, ainda que de maneiras outras, muitas vezes escondidas por detrás da delicada beleza que a obra final acaba por imprimir diante dos olhos daquele que a vê, especialmente se observada na polidez do espaço expositivo de galerias e instituições. Há uma dinâmica ultra complexa e talvez pouco conhecida (ao menos no circuito da arte contemporânea) que atravessa o fazer da tecelagem.
5. Quando perguntado por mim, durante a montagem da exposição, sobre o esforço físico e o tempo gasto nas obras ali presentes, a encantar meus próprios olhos por vezes por sua sensação de leveza e fluidez, Coopey me revela uma nebulosa relação que se dá com cada um dos materiais que elege para trabalhar em suas obras. Há aquelas que, decididamente, irão em algum momento ferir as mãos do artista, dadas suas espessuras e o extenso tempo empreendido em trançá-las, desfiá-las, reconfigurá-las em matérias outras. Reitero, aqui: a produção de Coopey naturalmente chama a atenção por sua beleza e exuberância, por sua coesão formal e pelos sofisticados repousos que encontram no espaço expositivo, travando finos diálogos entre si, provocando o visitante a tentar decifrar aquilo que sussurram por entre suas muitas e densas camadas. Aqui, no entanto, os fios são orgânicos, radicalmente distantes da frivolidade dos fios elétricos, maquínicos – hoje, aliás, já quase escassos, transformados em nuvens etéreas, transparentes e pesadas, a repousar por nossas cabeças. Clouds of all sorts, hidden mysteriously over our innocent heads. Nos debrucemos sobre os fios de Dan, um tanto mais interessantes, evidentemente.
6. Como a azulejaria – aqui também em uma comparação de certo modo descompromissada com uma dita narrativa história com “H" maiúsculo –, a tecelagem, a partir dos intensos fluxos de troca sofridos ao longo dos séculos ao redor do globo, é por si, também, uma prática artística e utilitária capaz de carregar estórias e narrativas outras de povos originários, desaparecidos, narrativas forçadamente marginalizadas e escondidas por entre os grossos fios de sisal que, em suas ranhuras diversas, nos recordam das tantas camadas semânticas acumuladas nestes materiais. Talvez aí resida o mais radical e complexo senso de contemporaneidade do corpo poético da obra de Dan Coopey: o artista está a nos lançar, a todo momento, para um ontem-hoje que opera feito uma incessante roda-gigante de um parque de diversões abandonado na beira de uma estrada. Nossos olhos fitam o presente, é claro, mas também miram um palimpsesto de épocas e narrativas evocadas pelo artista. Ainda que no silêncio de suas esculturas e mesmo na delicadeza de seu discurso, outro aspecto a destacarmos na produção do artista. Inteligente, afiado e consciente de seus passos. Dan sabe onde pisa – e onde coloca suas próprias mãos.
7. Sem nunca utilizar elementos artificiais em suas obras e empregando materiais adquiridos em sua maioria na Rua 25 de Março, em São Paulo – além de outros pontuais materiais trazidos em viagens ao exterior, mas de similar valor simbólico e mesmo financeiro – Coopey oscila, na realização do presente conjunto de trabalhos entre o desejo de tecer obras cuja visualidade evocam cestas de tipos diversos (errantes, abertas, gloriosamente rebeldes em suas vozes soberanas) e obras ainda mais rigorosamente formais, no que toca um fazer escultórico mais “convencional" ainda que completamente contemporâneo, como o restante do todo. O Duplo, por exemplo, obra que dá título à exposição, consiste em uma estrutura vertical de vime, ferro e goma de mascar (situada no interior da obra, em suas curvaturas), possui a quase exata altura do artista, evidenciando a relação intrínseca entre Coopey e seus trabalhos. Uma curiosa (e mesmo engraçada, em certa medida) relação arte-vida aqui apresentada ao público sem nenhum pudor ou receio. O artista está presente, em corpo, carne, vime, sisal, mãos marcadas pelas fibras, em sua doçura e discurso eloquente, em um vibrante pigmento natural de tons laranja que aquece nossos olhos e a imponência do concreto do espaço expositivo, a suavizar-se ao passo que as obras do artista o ocupam, o habitam. Estamos cercados de seres, de entes mais ou menos por nós conhecidos, relembrados. Sem medo, nos aproximemos – ambos! – por mais uma vez. E outras muitas vezes mais.
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O Duplo
Dan Coopey“Comecei a trabalhar com a fibra por coincidência – uma coincidência desejada – e continuei porque esta nunca me desapontou. À medida em que a conheço melhor, tanto melhor ela me conhece. Em poucas palavras, ela nunca deixou de despertar minha curiosidade. A fibra é como um lápis usado: utiliza-se por tanto tempo que não se dá mais o devido valor. Sou feita de fibra porque adotei-a, e porque a reconheço.” (Olga de Amaral, El Manto de la Memoria, 2013)
”Talvez, com minha tecitura, eu queira escrever em vez de descrever: a alma dupla, a dupla proteção da morte, a duplicidade inerente à criação de uma nova obra cujas características são tão parte do criador que acabam por tornar-se uma reprodução de si mesmo. Dá para pensar em cada obra, cada pincelada, cada forma simples, pequena ou grande, que surge a partir da pessoa que cria o duplo." (Olga de Amaral, ibid)
Estas palavras da artista colombiana encontraram eco enquanto fazia esta nova série de trabalhos, centrada em torno da minha relação pessoal com a tecelagem. Durante a tecitura, o corpo tem de fazer um grande esforço para tensionar as fibras contra sua disposição. E, estas, em contrapartida, criam tensão nas fibras do corpo – os tendões – que, como cabos, conectam cada músculo de nosso corpo. O título desta nova exposição vem de Olga de Amaral, e é também o título de uma das obras da mostra. Embora menos perceptível quando apoiada diagonalmente na parede da galeria, esta peça tem exatamente a mesma altura de meu corpo, uma conexão corporal que quis tornar explícita no trabalho. Cada curva e contracurva da escultura é formada pelo posicionamento da trama em ângulos específicos em relação ao meu corpo, e exige aproximadamente um mês dedicado à sua produção. Durante este processo, a tecitura é, em grande medida, uma extensão do corpo. Eu nunca projeto meus trabalhos. Ao invés disso, sua forma emerge organicamente a partir deste processo íntimo e intuitivo. Anni Albers escreveu sobre dar ao objeto a chance de projetar-se a si mesmo, e eu penso parecido. Recentemente, também venho pensando muito sobre o momento em que uma trama se torna completa e deixa de ser parte de meu próprio corpo, sobre como eu ainda mantenho alguma empatia pelo objeto e no que isso pode significar no que se refere a ter empatia pelos outros. Com este novo corpo de trabalhos, também tenho me voltado a outras forças externas que dão forma ao trabalho: o uso de uma agulha para fechar uma das obras, por exemplo, agindo como substituta de minha mão, colocando-a no centro da trama, ou o efeito da gravidade e como esta dita a forma como cada objeto se dobra, assim como seu caimento.
“Ao adentrar a essência da tecitura – sua função como uma proteção contra os elementos – é inevitável olhar para a paisagem e não surpreender-se pelo paradoxo que surge: a paisagem, inversamente, passa a ser percebida como uma abstração da tecitura, que é apenas um manto que cobre a terra.” (Olga de Amaral, ibid)
Esta última citação de Amaral me toca especialmente. Cresci em uma pequena cidade rural no Reino Unido – Stroud –, famosa pela tecelagem. E, ali, a paisagem é literalmente moldada pela indústria, das casinhas dos trabalhadores e das muitas pequenas fazendas ovinas, como a de meus avós, que fornece lã para as fábricas vizinhas, aos canais construídos para transportar fibras e tecidos. Passei grande parte de minha educação infantil aprendendo sobre esta indústria e as consequências da Revolução Industrial. Uma sociedade histórica local que costumava organizar visitações públicas e visitas escolares guiadas, sugestivamente a descreve e conta como esta sobrevive até hoje:
“As raízes de nossa herança têxtil permanecem subjacentes. Os topos das montanhas de calcário fornecem a pastagem perfeita para ovelhas e um material de construção ideal; as camadas de argila, mais abaixo, criam nascentes – água fresca para as casas e um suprimento abundante para as rápidas correntezas que são capazes de fazer girar as rodas d’água. E há ainda a argila, a bentonita.
Explore a paisagem – há centenas de trilhas, muitas ligando povoados às fábricas. Antes da Revolução Industrial, fiandeiros e tecelões trabalhavam nas casinhas abastecidas de lã ou linha pelos vendedores a quem os tecidos eram devolvidos para tingimento e finalização. inovações no maquinário expandiram as fábricas. Fiandeiros e tecelões tornaram-se trabalhadores fabris, juntamente com seus filhos. Máquinas a vapor agora suplementavam a força da água com o carvão que vinha sendo transportado pelo canal. No auge da prosperidade, a região de Stroud continha mais de 100 fábricas. Hoje os tecidos de Stroud ainda são exportados para o mundo todo, podendo ser vistos em bolas de tênis e mesas de sinuca. O trabalho de fiação, tingimento e urdidura sobrevive através de artistas contemporâneos que transmitem suas habilidades e mantém o fio de ligação entre o passado e o futuro.” (StroudWater Textile Trust, Textile Heritage, 2022)
Lembro-me de visitar antigas fábricas, uma das quais onde minha mãe trabalhou quando eu era jovem, e aprender a tecer com lã em pequenos teares de papelão. É engraçado relembrar este tempo e perceber que aquelas técnicas permanecem em meu trabalho até hoje. Afora sistemas mais improvisados que usam o trançado ou o debrum, meu trabalho geralmente emprega simples técnicas de entrelaçamento. Gosto do fato de que uma técnica comum tenha uma história antiga e abrangente, e que guarde tanto potencial, a depender da maneira como é empregada assim como da fibra escolhida.
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Para esta exposição, trancei principalmente fibras macias – cabos e cordas – em larga escala, que conferem aos objetos uma qualidade híbrida estranha, entre a cestaria e a tecelagem. O trançado tem muitas variedades, do relativamente simples ao muito complexo, e está presente na cestaria e nas tradições têxteis de todo o mundo. Pode ser definido como dois ou mais comprimentos de fibra retorcidas uma sobre a outra, como na cordoaria. Porém, aqui, conforme o material é torcido, prendemos varetas entre elas. Com materiais rígidos, pode ser chamado de fitching ou pairing no Reino Unido, dependendo da direção em que torcemos a fibra.
Para o olhar leigo, as técnicas de trançado podem ser vistas como puramente decorativas ou até simbólicas, e tem o potencial de ser ambos – para muitos grupos indígenas no Brasil e em outros locais, o trançado é também uma forma de comunhão e contação de histórias, embora tenha nascido da necessidade. Por exemplo, entre povos indígenas no Brasil a técnica mais comum é a cruzada e suas muitas variações, na qual as fibras são sobrepostas diagonalmente para criar uma superfície plana e frequentemente lisa. Esta técnica é empregada pois é a mais prática para ser usada com fibras chatas, como as muitas variedades de palmeiras. Aqui na cidade, o enlaçado é a mais comum – a clássica sobreposição de fibras “por baixo e por cima” usada globalmente – que é muito mais prática para as limitadas fibras disponíveis comercialmente, além de oferecer velocidade para a produção em massa.
Muitas das fibras que uso em meu trabalho, eu compro na 25 de Março e em seu entorno, no centro de São Paulo. Quando visito o Reino Unido, sempre trago uma sacola de fibras que não consigo encontrar aqui, tais como o rattan e o lúpulo, que é produzido a partir de sobras de fibras de lúpulo da fabricação de cerveja, e que usei para fazer Beer Belly (Barriga de Chopp, 2022). Outras fibras usadas na mostra, são muito mais comuns no Brasil, como o sisal (principalmente o cultivado na Paraíba e na Bahia), e a juta (da planta Corchorus, comum em áreas tropicais e subtropicais). Quando quero usar fibras naturais aqui na cidade, as opções são deveras limitadas e, claro, nem muito práticas e nem éticas de serem importadas de longas distâncias, mas esta limitação sempre impulsiona o trabalho em novas direções. Há muitas fibras sintéticas, claro, mas estas são frequentemente mais caras e, embora eu as tenha usado no passado, venho tentando evitar tais elementos poluentes ultimamente.
Há muito que a 25 de Março tem uma ligação com fibras e tecidos. No século XIX, muito do trabalho em tear nas vilas e cidades do Estado era da competência de cada família que vendia tecido, tendo ambos os gêneros (assim como crianças maiores) empregados. As tecelagens eram frequentemente instaladas nas cozinhas dos casebres para que as tecelãs pudessem trabalhar enquanto simultaneamente gerenciavam tarefas domésticas, como cozinhar e limpar. No entanto, gradualmente, fábricas maiores e corporações foram fazendo lobby para passar leis limitando a importação de maquinário, e estes pequenos produtores foram forçados a adentrar o comércio de tecidos transportando suas velhas máquinas para cidades e lojas ao longo de ruas como a 25 de Março, onde faziam roupas diretamente para o varejo. Em seu excelente artigo “Façonismo: produção familiar em tecelagem”, o sociólogo José Carlos Durand descreve como, até os anos 1970, “empresários que se dedicavam à tecelagem estavam desativando seus teares próprios e deslocando atenção e investimento para tinturaria e beneficiamento de tecidos”. A indústria do tecido cru passou para as mãos dos grandes negócios.
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Meu interesse nas tecelagens remonta, porém, ao início da humanidade – a cestaria é considerada a tecnologia mais antiga da humanidade – quando o ato de trançar evoluiu e tornou-se onipresente antes de seu declínio mais recente. Os cestos mais antigos conhecidos são datados de aproximadamente 12 mil anos atrás. A primeira corda é ainda mais antiga, precedendo até a cerâmica. O que sabemos sobre a história da cestaria vem muito de impressões de trançados encontradas em fragmentos de argila. Presume-se que a argila era embalada em cestos para permitir o transporte de líquidos. Em seu ensaio pioneiro, de 1851, Os quatro elementos da arquitetura, o arquiteto Gottfried Semper insistia que a fiação, torção e atadura de fibras lineares estão entre as mais antigas artes humanas, das quais todas as outras teriam derivado, incluindo tanto a edificação quanto a tecelagem. “O início da edificação coincide com o início da tecelagem”, escreveu. “E o elemento mais fundamental tanto da construção quanto da tecelagem foi o nó”.
O papelão foi inventado há apenas 200 anos, o plástico ainda mais recentemente, há cerca de 100, e, antes disso, cestos eram a forma mais comum de armazenamento e transporte. Qualquer mercado internacional era um mar de recipientes trançados de todo o tipo, forma e tamanho. Acho incrível a rapidez com que os residentes de cidades e municípios industrializados se desligaram tanto da tecelagem manual. O artista estadunidense Ed Rossbach observou, em 1976, que “os usos da fibra que resistiram à mecanização – como a cestaria – tendiam a tornar-se uma atribuição das sociedades não-mecanizadas”. A tecelagem manual poderia agora ser vista pelos habitantes das cidades como uma novidade, algo interessante, desvinculado da tarefa mundana que em tempos havia sido. “Se uma técnica manual de construção com fibras não podia ser mecanizada, outra técnica ou produto eram criados para supri-la ou substituir o original”.
O declínio da tecelagem pode ser uma preocupação solitária, dado que é discutida apenas em círculos de especialistas em artesanato, como demonstram as citações deste ensaio. A britânica especialista em tecelagem Dorothy Wright escreveu extensivamente sobre o declínio da cestaria em seu livro de 1959 Baskets and Basketry (Cestos e cestaria), e até discute como os caprichos da moda desempenharam um papel importante, observando que minissaias não combinam com cestos de compras e móveis de vime, dado o perigo do nylon. Ela insistia que quando saias mais longas voltassem à moda, cestos de compras de vime também voltariam. Infelizmente, foi otimista demais. Sua observação de que “são muito usados, tanto no campo quanto na cidade, por pedreiros, pescadores, agricultores, carteiros, entregadores de alimentos e bebidas, e também nas fábricas”, pertence a um passado distante hoje em dia. Porém, é engraçado como aquelas coisas de plástico com alças que usamos para carregar compras dentro do supermercado ainda são chamadas de ‘cesto de compras’, reconhecendo seu equivalente histórico original trançado à mão. Muito recentemente, talvez tenha ocorrido também um pequeno renascimento deles, com as cafeterias e padarias hipsters que agora são mais propensas a disponibilizarem cestos de pães e doces. É, claro, uma estratégia de marketing desenvolvida para seduzir clientes com um viés de frescor, história, qualidade e autenticidade, e funciona, talvez porque as pessoas realmente estejam procurando por este senso de tradição.
Em outubro, passei um mês morando com a comunidade de La Urbana, uma vila colombiana ao longo do rio Caño Mataven e da fronteira com a Venezuela, como parte de uma residência organizada pela Organizmo, uma organização colombiana sem fins lucrativos. Foi uma grande honra poder aprender em primeira mão sobre suas vidas e passar meu tempo convivendo e co-criando com eles. Ficou claro que a comunidade também sentia que futuras gerações não continuariam a tecer. Enquanto nos despedíamos, Nori, uma das mais experientes tecelãs da vila, fez um apelo emocionado aos jovens locais: “Quero dizer algo aos meus sobrinhos: é mentira que homens não tecem. Vejam o Dan, ele tece, assim como nós mulheres. E vocês também deveriam tecer”. Sim, é uma vida de risco. Alguns dias, acordava às 5 horas da manhã para ajudar as mulheres da comunidade a coletar mandioca no campo, onde nos disseram que costumavam começar mais tarde e passar o dia todo trabalhando ao ar livre, porém debaixo de um sol causticante do meio-dia. Foi triste vê-las sofrendo as consequências ambientais devastadoras de nosso modo de vida capitalista e industrializado. À medida em que o mundo avança em direção a um desastre ecológico criado por nós mesmos, todos devemos ouvir e aprender com os costumes dos povos indígenas, e buscar uma relação mais próxima, mais respeitosa, mais entrelaçada com a natureza.
Filósofos frequentemente especulam a respeito do que farão as pessoas se computadores e máquinas tomarem o controle e a mão humana for considerada redundante. Imagino se será este o momento em que as pessoas voltarão a tecer novamente, mesmo que apenas para passar o tempo.
“Todo progresso, assim me parece, vem acompanhado de regresso em outra área. Em geral, avançamos. Por exemplo, no que diz respeito à articulação verbal – o público leitor e escritor hoje é enorme. Mas, certamente, nos tornamos mais insensíveis à nossa percepção do tato – do senso tátil.” (Anni Albers, 1965)
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o duplo, 2023
vime, ferro e goma de mascar
173 x 30 x 30 cm