27 mai – 27 jul 2019
texto juliana monachesi
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A Central Galeria tem o prazer de apresentar ACORDO, individual do artista Mano Penalva, com texto crítico de Juliana Monachesi. Na exposição, Penalva apresenta um conjunto de trabalhos inéditos, produzidos entre 2018 e 2019 e construídos a partir de um olhar sobre as coisas do mundo, do gesto e da circulação de mercadorias nas ruas. Materiais e objetos são arranjados, estruturados ou encostados a partir de um deslocamento considerado como um estado normal; panos, cintos, sacolas, objetos ordinários e gestos são reorganizados como fragmentos de uma composição precisa.
No trabalho de Mano Penalva percebe-se comumente uma espécie de “quebra da normalidade” dos objetos – capacidade de reconfiguração surpreendente e inesperada, quando os mesmos deixam suas funções primeiras e imprimem novas possibilidades e formas de pensar a sua existência.
Para ACORDO, foram produzidos dois trabalhos que levam o nome da exposição; uma canção de trabalho, produzida em parceria com o cantor Paulo Neto, e um vídeo, em parceria com o diretor Di Rodrigues e participação dos artistas Fernanda Pavão e Moisés Patrício.
Na música ACORDO (canção de trabalho do artista) Mano traz refrões como: “Acorda, acorde, acode / O tempo levantou cedo/ 24/7, é labuta o dia inteiro/ Quem sai pra trabalhar, sabe o tempo de quarar”, estabelecendo uma relação entre a fala, ou seja, dos sons guturais associados aos movimentos. O tema “trabalho” reforça a condição de “ofício artístico” que extrapola a relação produtor e produto, deslocando a produção artística de uma prática romântica/criativa, ao mesmo tempo que valoriza a labuta em diversos segmentos e o processo de tentativa e erro, onde o artista passa a ser “Artista etc”; como chamou Ricardo Basbaum.
Tecidos plissados manualmente repousam sobre facas fixadas nas paredes e uma grande cortina corta o espaço. Suas dobras orgânicas se relacionam semanticamente com ACORDO, a canção de trabalho.
Parte das esculturas vem do olhar para gestos e práticas do comércio informal, dos vendedores de rua, e tem seus nomes no diminutivo como “Palhinha”, “Melzinho” e “Quentinho”, estabelecendo também uma relação com a fala coloquial e sua afetividade.
“Quentinho” consiste em um suporte para cones de papel recheados de amendoim, onde o expectador tem a possibilidade de adquirir uma peça com o aditivo da “sorte grande” por um valor simbólico, já que um deles contém um amendoim feito em ouro.
O trabalho de Mano Penalva parte do estudo da Cultura Material, mudanças de comportamento e efeitos da globalização. Sua produção é deliberadamente não-representativa, permitindo que os materiais e objetos ditem a forma e se unam quase que por conta própria a partir de um desejo de existirem no mundo. O artista explora a poesia obtida pelo deslocamento dos objetos de seu contexto cotidiano, trabalhando com diferentes mídias como pintura, fotografia, escultura e instalação. Ao criar os trabalhos, subverte o valor dos objetos do cotidiano, propondo novos agrupamentos estéticos a partir da relação das estratégias de venda do varejo e das suas experiência de coleta.
Em ACORDO, Mano Penalva traz à tona a ideia que a exponencial proliferação de objetos e imagens não se destinam a treinar a percepção ou a consciência, mas insistem em fundir-nos com eles.
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A encantadora alma das ruas de Mano Penalva
É uma questão de aceitar a dignidade do trabalho, seja ele qual for.
Politicamente, o âmago é aceitar a dignidade do trabalho.
E o trabalho não é uma coisa servil.
É algo que exprime a alma da pessoa.
[Nise da Silveira, em entrevista a Leon Hirszman]A estética da gambiarra se consagrou, no Brasil, no final dos anos 1990, notadamente pelo esforço de curadores e críticos que revisaram a produção artística feita com materiais do dia a dia, por vezes precários ou efêmeros, em geral para fazer colidir arte erudita e arte popular. Foram sobretudo a 24a Bienal de São Paulo (1998) e as mostras do eixo curatorial Cotidiano/Arte, adotado pelo Instituto Cultural Itaú para a programação do ano de 1999, que colocaram em pauta a antropofagia que a arte brasileira fez do dadaísmo e do conceitualismo, principalmente do legado de Marcel Duchamp, que entre nós chegou com certo atraso (entre eles também; basta lembrar que The Duchamp Effect, a icônica publicação do MIT, data de 1996). Naquela virada de milênio, questionava-se o que seria das montanhas de refugo industrial que a humanidade conseguira produzir em escalada exponencial rumo ao século 21.
No final dos anos 2000, já se falava em gambiologia, abarcando a apropriação do lixo digital na produção artística, e nova rodada de mostras e debates aconteceu em torno do tema, repaginado. Em 2006, a 27a Bienal de São Paulo examinou a economia e afetividade das trocas, do deslocamento e das formas do viver coletivo. Uma exposição no New Museum, em 2007, ofereceu uma nova narrativa para a vasta produção contemporânea feita prioritariamente com objetos da vida mundana. Intitulada Unmonumental, a mostra reuniu artistas como Isa Genzken, Rachel Harrison, Abraham Cruzvillegas e John Bock para indicar a escolha da colagem e assemblage, da escala humana e da baixa assertividade para abarcar o mundo em ruínas pós 11 de Setembro. Por aqui, onde jamais fomos modernos, mas já éramos pós-modernos em tempos coloniais, o ready-made permeia a história da arte desde os anos 1960 e vem sendo esgarçado e ressignificado pelas gerações subsequentes. Todo este preâmbulo poderia desembocar, naturalmente, em uma leitura crítica das apropriações de Mano Penalva de objetos cotidianos, como a sacola de feira, feita de ráfia, ou as faixas de polietileno das cadeiras de praia, ou ainda as lonas coloridas dos vendedores ambulantes, para a criação de pinturas-objeto imantadas da vida das ruas do Brasil profundo. Não fosse pelo fato de a exposição ACORDO, que o artista preparou ao longo de meses (senão anos, a contar da gênese de seu discurso muito particular) para apresentar na Galeria Central, não orbitar essa estética pela qual Penalva ficou conhecido. Acontece que a linguagem do artista não implica uma estetização da precariedade, mas, sim, um entendimento da rua como sujeito. Este sujeito é o protagonista da individual ACORDO.
‘’Pedra e Sabão”, por exemplo, carrega a alma encantadora das ruas. Parte, como todas as obras da exposição, da observação muito atenta do Mano Penalva caminhante, que não olha apenas, mas vive a cidade com o corpo todo: escuta, conversa, sente os odores e os vapores da metrópole. Na banca rasteira de uma vendedora ambulante, ele negocia as pedras de sabão. Da poesia - o artista empresta da literatura brasileira e de sua música popular grande parte de seu repertório imagético, além de ser exímio nos jogos de palavra, como indicam os sentidos cambiantes do título de sua exposição - ele traz a pedra-sabão. O grupo escultórico funciona, em ACORDO, como síntese de todo o pensamento. Ali estão concentrados a experiência coletiva das trocas que se dão nas ruas, nas feiras, nas fazendas, do trabalhador informal que domina o seu ofício de ponta a ponta (cuja recusa à alienação fascina Penalva); a negociação, a economia simbólica e, claro, o aceno sensível a David Hammons, o artista que, notoriamente, estendeu uma lona no chão de inverno de Nova York para vender bolinhas de neve de diferentes tamanhos aos transeuntes menos anestesiados dos anos 1980.
Em torno de Pedra e Sabão, o visitante vê outros conjuntos escultóricos que emulam a performance de vendedores e artesãos ambulantes: Quentinho, Cintura, Melzinho; mais adiante estão Xadrez, Descanso, Margarida e Palhinha, cada um pensado como a materialização dos gestos que compõem a teatralidade típica do fazer, do organizar e das negociações do mercado de rua. Quentinho, por exemplo, traz a expectativa presente nas relações de compra e venda; cones de amendoim oferecidos pelo ambulante ganham o aditivo da “sorte grande”, porque um dos amendoins é uma peça em ouro, e quem visita a exposição pode comprar um por R$ 50 e três por R$ 100. Os cintos que o vendedor oferece pendurados em seu braço, os panos que o outro carrega no ombro, as palhinhas que artesãos tramam nas esquinas. Todos parecem estar num jogo preciso que conversa com “Acorde”, uma composição distribuída dinamicamente pelas paredes, de lonas enceradas, dobradas e repousadas em facas e bastões de vidro. Novamente, corporificado, outro personagem da rua: o amolador de facas, que também protagoniza um vídeo apresentado em TV de tubo.
A realização das mãos, a artesania das imperfeições, o ciclo dos acordos: toda narrativa que subjaz à observação e corpo-a-corpo de Mano Penalva com os ambulantes ecoa, no contexto da arte, o processo de criação e inserção do próprio artista. O labor diário de todos eles, desde que acordam até o último “acordo bem acordado” do dia, seja com o comprador, o fornecedor ou a patrulha a que estão sujeitos os trabalhadores da rua e da arte, encontra na exposição um elogio e uma homenagem. A labuta vem acompanhada de sons, um deles uma composição musical, feita para os dias de trabalho no ateliê até o momento da exposição, em parceria com o cantor e compositor Paulo Neto, à la “cantos de trabalho” recolhidos por Leon Hirszman na trilogia Mutirão, Cacau e Cana-de-açúcar, documentários de curta-metragem que mostram as cantigas que os camponeses nordestinos entoam para amenizar o trabalho pesado. “Acorda, acorde, acode, o tempo levantou cedo. (...) Vamos fazer um acordo, toco um acorde pra você. E se você cedo acordar, acordo bem acordado, outro acorde vou lhe cantar”, o visitante escuta ao percorrer a Central. Há, finalmente, o som do Koan (na tradição zen-budista, perguntas que não têm resposta), que se ouve em um breve momento do vídeo ACORDO, a projeção sobre cortina de lona vincada que está no centro da sala. Aqui, Penalva trabalhou com Fernanda Pavão, Moisés Patrício, Paulo Neto e o diretor Di Rodrigues, outra modalidade do viver coletivo e da afetividade das trocas, presente em todas as obras expostas. O que pode fazer uma mão sozinha? Qual o som de uma só mão a bater palma? A teatralidade das mãos é explorada, na obra audiovisual feita a dez mãos, implicando o simbolismo do aperto de mãos, do toque, do jogo, da mágica. Um só acorde, assim como um acordo solitário, não desenrola nada. Desenrola o que nasce de uma relação, de um saber geolocalizado, de uma ancestralidade assumida. Mano Penalva sabe de onde fala, por isso faz falar com tanta potência esse concerto polifônico que é a sua surpreendente exposição sobre a alma das ruas.
// Juliana Monachesi