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gisele camargo: erosões


03 ago – 21 set 2019
texto sergio martins

  • A Central Galeria tem o prazer de apresentar “Erosões”, individual de Gisele Camargo com texto crítico de Sergio Martins.

    Gisele Camargo é do Rio de Janeiro mas hoje mora na Serra do Cipó, em Minas Gerais. Sua nova exposição traz a imersão da artista nas erosões naturais que encontra no meio das montanhas do cerrado mineiro.

    Parede paisagem, as erosões levaram a artista a pensar na pintura como uma paisagem que está se formando e modificando diariamente; mudança vagarosa e no entanto radical. Sedimentos, pedras, plantas e uma infinidade de elementos naturais se movem e, simultaneamente, o fundo da terra se mostra, na tentativa de se arrumar, de emergir à superfície e voltar ao seu lugar.

    Gisele vê as erosões do cerrado mineiro como um altar onde todas as forças estão expostas; um lugar que ao adentrar revela o seu todo e se faz compreender.

    O processo das pinturas para essa exposição se conecta diretamente com a relação da artista com as erosões; o tempo que cada trabalho necessita, diversas pinturas se sobrepõem; são apagadas, raspadas e novamente cobertas de tinta.

    Na natureza um processo repetição infinita, na tela a artista escolhe o fim; uma viagem em sua memória, das cores e densidades dessas “paredes” que buscam o sol.

  • Paisagem e Parede

    É uma paisagem. Dois elementos se destacam, formando um par de opostos: ao longe, um pico define o horizonte; um buraco, em primeiro plano, sinaliza a erosão em questão, sem que, no entanto, enxerguemos seu interior.

    Muito antes de firmar-se como gênero acadêmico, a paisagem já ganhava certa autonomia em quadros como o de Lotto. A emergência da pintura a óleo foi fundamental para este processo; antes dela, era certamente possível denotar elementos de uma paisagem agreste como a da penitência do santo, mas jamais tornar uma superfície de pedra um foco visual de tamanha riqueza e minúcia, e muito menos dar-lhe tal primado na composição.

    Gisele reagiu a esta pintura com dois espantos: o primeiro, pela assombrosa semelhança entre as pedras que circundam São Jerônimo e a erosão na Serra do Cipó; o segundo, por não lembrar de tê-lo visto antes, a despeito dos inúmeros quadros renascentistas que estudou durante sua formação através de exercícios de estrutura tonal. Ainda assim, não creio ser o caso falar em coincidência; afinal, Lotto é um dos marcos da emergência de todo um vocabulário pictórico – e com ele, de um arco de pensamento visual – que terminou por percorrer a história da pintura ocidental. É a súbita consciência da afinidade entre dois pontos extremos desse arco que o espanto de fato sublinha.

    ***

    John Berger insiste, escorando-se em Lévi-Strauss, que a tinta a óleo impulsionou a pintura ocidental ao colocá-la a serviço da figuração de todo um mundo de posses – do cintilar das jóias à fartura dos banquetes, da pelagem de uma tapeçaria à pele exposta de um torso feminino. Para o ensaísta, a paisagem foi o caso limite desse quadro ideológico, o gênero que mais incisivamente o testou e que, talvez por isso mesmo, terminou por expandir seu alcance. Mas se isso é verdade – se a pintura a óleo é, entre outras coisas, uma tecnologia de confirmação da posse –, então vale lembrar, agora com Walter Benjamin, que toda tecnologia possui um “momento utópico” que fulgura tanto em seu nascimento quanto no instante de sua obsolescência, um momento no qual essa mesma tecnologia ou bem ainda não se encontra completamente podada pelo jugo instrumental, ou então pode ser dele redimida.

    É nessa clave histórica – como dois parênteses, dois pontos extremos do arco histórico da paisagem, mas em alguma medida também externos à sua codificação como um gênero – que ganha relevo a afinidade entre a protopaisagem do Jerônimo de Lotto e as pós-paisagens da série Erosões. Entre a paisagem que ainda não é e a paisagem que já não se enquadra no que entendemos por paisagem.

    ***

    Nas casas do século XVII, diz ainda Berger, pinturas a óleo sobrepõem-se umas às outras, oferecendo miradas sobre posses reais, possíveis ou imaginárias. Compõem, portanto, uma parede de vistas, um ponto de conciliação entre dois esteios, de resto contraditórios, da nascente subjetividade burguesa: o resguardo privado do interior doméstico e a expansão pretensa e potencialmente infinita do domínio sobre o mundo. A inversão aqui operada pela série Erosões – bem como a dialética histórica que a informa – torna-se particularmente evidente.

    Ao contrário daquela parede de vistas, esta é uma parede de paisagem cuja ênfase agora recai sobre o primeiro termo. Se naquela, a vista oferecida faz evanescer a parede, nesta, ao contrário, a paisagem redobra sua concretude. Antes, o quadro fazia da parede uma vista ou paisagem; aqui, a paisagem faz do quadro parede. Quadradas e de proporção humana – um metro e oitenta –, as telas têm um antropomorfismo de matiz minimalista, um pé fincado no espaço do espectador, uma presença física algo intrusiva, tanto mais pela espessura acidentada das camadas de tinta. É como se trouxessem para dentro da sala, ainda que numa dimensão transportável, algo daquele paredão de pedra submerso no cerrado.

    No quadro de Lotto, a pintura a óleo revelava sua potência ao encrustar o santo na paisagem; nas Erosões, por sua vez, ao permitir que a pintura trilhe uma estranha linha entre paisagem e objeto. Paisagem também é enquadramento, mas este é lenta e dialeticamente superado pelo trabalho da pintura nesta série. Vemos seus resquícios em alguns traços pretos do bastão de óleo; no início, eles esquadrinhavam a superfície do quadro, um pouco à maneira dos esquemas de recorte, justaposição e colagem que pautam várias das séries anteriores de Gisele. Longe de simplesmente abandonar esses esquemas em prol de uma guinada neoexpressionista, o que a artista agora faz frente ao dilema posto – como ver paisagem numa parede? – é torná-los como que fundamentos soterrados por uma visualidade que já não pode simplesmente se submeter a tais esquemas, assim como o santo e sua narrativa, por mais indispensáveis que fossem, já não mais submetiam a si o trabalho pictórico da paisagem.

    ***

    Seria plausível ver algo de Monte Saint-Victoire na descrição que acabo de esboçar, mas outro acidente geográfico talvez qualifique melhor o que está em jogo. Afinal, como olhar para aquela primeira fotografia e não lembrar do Pico do Cauê, transformado ele próprio num buraco pela voracidade da exploração do ferro na Itabira de Drummond, não muito distante da Serra do Cipó?

    Como qualquer outro signo, a paisagem refere-se a algo ausente. Daí que ela seja capaz não só de confirmar posses atuais, mas também de prometer posses virtuais. Mas isso também significa que todas essas posses são assombradas, em alguma medida, pelo seu oposto: a perda. Num universo de expansão colonial ou imperial, tal dimensão tende a passar desapercebida; na modernidade burguesa, no entanto, esse recalcado sempre retorna – e não só como perturbação, mas como um elemento constitutivo; afinal, é uma classe sempre na iminência de ganhar ou perder. No modernismo, finalmente, a perda se torna uma matéria poética de primeira importância, e a paisagem não passa incólume: “Itabira é apenas uma fotografia na parede / mas como dói”.

    Não se sabe ao certo se a erosão é natural, ou se foi propiciada, ainda que em parte, por alguma atividade humana, como a criação de gado. Pouco importa: se o espectro da perda incide sobre a paisagem do antropoceno, é sobretudo pela crescente dificuldade de nos alhearmos dela, pelo chão existencial que ameaça desmoronar não mais por conta do oposto da posse, do domínio, mas como consequência de sua extrapolação em último grau. Ao recolocar a paisagem na parede – como parede –, a série Erosões nos recoloca também nesse quadro e prova que a atualidade de um gênero reside precisamente em sua capacidade de continuar funcionando como um esquema vital de pensamento do mundo.

    // Sergio Martins

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