30 set – 16 nov 2019
texto guilherme wisnik
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A Central Galeria tem o prazer de apresentar Montanhas nos assistem em time-lapse, individual de Mariana Manhães com texto crítico de Guilherme Wisnik. A exposição reúne 5 grandes obras inéditas que misturam vídeo e animação inseridas em um corpo escultórico, como montanhas que falam e mastigam.
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Linguagens Esquivas
Qual é a linguagem das coisas milenares? Seriam o silvo dos ventos, o borbulhar das lavas, ou o ronco das ondas, formas de discursos em velocidades e frequências tão longas e distendidas que nós não chegamos a compreender? O que nos estariam dizendo? Para muitas culturas as coisas todas no mundo são vivas, e se comunicam. Mesmo uma pedra no chão não é algo inerte. Tudo fala. Tudo sente. Nós é que não vemos. Ou não ouvimos. Ou não sabemos. É que o corte racionalista da nossa cultura – que podemos chamar de iluminista, de moderno, ou de ocidental –, ao desencantar o mundo, nos deixou sozinhos no lugar de fala, no lugar de seres produtores de discurso, de pensamento. Estranha solidão vitoriosa.
Cézanne passou a vida olhando para uma montanha. E em cada pintura que fez da montanha Santa Vitória, ela aparece diferente. São inúmeras as montanhas vistas por ele, porque seu olho, curioso e incansável, não parava de ver novas montanhas dentro da mesma montanha, como se fossem buracos se abrindo na paisagem, e na tela, estilhaçando o campo visual de sua integridade plana, e fecundando o lugar de onde nasceria o cubismo. Mas agora cabe alargar a pergunta: o que é que a montanha diria de Cézanne? Como é que ela o vê? Essa ordem de reflexões, me parece, move os trabalhos de Mariana Manhães.
“O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha”, escreve Didi-Huberman [1]. Isto é, não somos apenas nós os sujeitos da ação. Sem o olhar das coisas, o nosso olhar é estéril. E se não soubermos disso, entenderemos sempre tudo de modo parcial, míope. De que forma uma lápide nos olha? O que é que ela nos diz sobre a morte? Que há uma alma que se desprendeu daquele corpo putrefato lá embaixo? Ou, ao contrário, que não há nada além daquilo mesmo, daquela perda, e ela é apenas uma pedra nos encarando? Pequeno pedaço de uma montanha cortada, que assiste a nossa existência fugidia na perspectiva do tempo geológico. Crença ou tautologia? Duas formas de se tentar evitar o vazio aberto diante da morte. Mas o túmulo nos olha, escreve Didi-Huberman, porque impõe em nós “a imagem impossível de ver” [2]. O inominável, o invisível... Os trabalhos de Mariana Manhães, nessa exposição, procuram dar alguma tangibilidade a essas questões. Mas não nos trazem respostas inteligíveis. Antes, dobram o enigma.
// Guilherme Wisnik
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1. Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 29 (tradução de Paulo Neves).
2. Idem, p. 38.
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Sobre as montanhas inomináveis
Todas as palavras serão um dia cobertas por musgo e partículas de poeira. A palavra m-o-n-t-a-n-h-a, por exemplo, será soterrada pelo pó de sua própria erosão e não poderá mais ser pronunciada na língua humana, com sua pobre fonética ritmada em sintonia com a restrita morfologia de nossos corpos. E as coisas vão finalmente voltar a ser o que eram antes de serem coisas – elas voltarão à nobre ordem do inominável.
Há uns oito, quinze ou sessenta anos, eu assistia a um documentário na TV sobre a Islândia. O narrador me surpreendeu quando afirmou que lá ainda existiam montanhas inominadas. Foi uma das coisas mais marcantes que já ouvi. Afinal, se elas não têm nomes, não estão incluídas na nossa linguagem.
Consequentemente, a dúvida que se impunha era: elas existiam? A resposta é sim. No entanto, trata-se de uma existência impenetrável para nós, própria do mundo e linguagem delas, linguagem essa tão real quanto a nossa. Encontrei, na afirmação ouvida no documentário, ressonância com tudo o que fazia e continuo fazendo. Os trabalhos que produzi para esta exposição são mais uma vírgula numa frase muito longa que comecei há anos atrás e que ainda não sei como vai terminar.
No mundo e na linguagem das montanhas, rochedos e pedras, o tempo não se conta em dias e anos e décadas. Por isso, não as compreendemos totalmente. Elas falam numa velocidade tão lenta que não somos capazes de ouvir. Dar nomes a esses seres é uma tentativa vã e ilusória de dominá-los. Nada disso funciona. As montanhas nos assistem em time-lapse.
// Mariana Manhães