21 nov 2019 – 02 fev 2020
curadoria catarina duncan
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Disruptiva e multidisciplinar, a artista Gretta Sarfaty faz de seu corpo espaço para experimentação artística, política, campo de transformação. Em sua obra, o corpo feminino é território tanto para questionamentos internos quanto sociais. Expoente da body art no Brasil, a artista traz ao público séries de trabalhos emblemáticos na mostra Dos nossos espaços vazios internos, individual em cartaz na Central Galeria.
“A obra de Gretta Sarfaty transborda as narrativas da subjetividade do ser mulher enquanto sujeito político coletivo, inventado para atravessar problemáticas identitárias e ampliar os limites daquilo que se espera da nossa existência”, reflete Catarina Duncan, curadora da mostra.
O corpo artístico de Gretta é livre, não se limita a paredes ou a um único espaço. A série A Woman’s Diary (1977), um dos destaques da exposição, é apresentada agora em lambe-lambes que vão para além do espaço expositivo da galeria e se expandem para as ruas do centro da cidade de São Paulo. São autorretratos preto e branco nos quais ela convida o público a adentrar um diário de seu próprio corpo. “A ação desenvolve um novo sentido do que é público e transforma assim o significado da arte na sociedade”, pontua Duncan.
Os trabalhos eleitos pela curadoria datam de 1973 a 1981, são documentações de performances e autorretratos, fotografias nas quais a artista divaga sobre a representação do feminino na arte e traz ao público experimentos artísticos com o próprio corpo. A exemplo das séries Body Works (1976) e da notória Evocative Recollections (1979), que traz registros da performance em que a artista colocava seu corpo nu em atrito ao de um gato, em alusão à sensualidade feminina.
O título da mostra surge de uma citação da crítica e historiadora de arte americana Linda Nochlin, em análise sobre o motivo pelo qual obras de tantas mulheres artistas se mantiveram anos a fio sem reconhecimento. “As coisas como estão, e como foram antes, nas artes e em centenas de outras áreas, são estupidificantes, opressivas e desestimulantes para todos aqueles que, como as mulheres, não tiveram a boa sorte de nascer brancos, preferencialmente de classe média e, sobretudo, homens. A culpa não é dos astros, dos nossos hormônios, dos nossos ciclos menstruais, dos nossos espaços internos vazios, mas das instituições e da nossa educação”, afirmou Nochlin.
Nascida na Grécia e naturalizada brasileira, Sarfaty iniciou ainda muito jovem no circuito das artes plásticas, em um Brasil que atravessava as represálias da ditadura militar e entrava em ebulição com pautas relacionadas à mulher. Logo se destacou como artista de vanguarda, com obras em que usava o corpo como suporte e linguagem, criações permeadas por reflexões e provocações sobre o desafio artístico de ser mulher naqueles anos e que trazem à tona a dificuldade da artista em se firmar como sujeito com algo a dizer para além de sua aparência.
Em meados de 1980, em meio à sua ascensão artística, a artista muda-se para Nova York e depois para Londres, e intensifica sua produção. É nessa fase que seu trabalho ganha notoriedade com exibições em instituições e galerias mundo afora, como o MASP, o Palazzo Dei Diamanti, o Centro Georges Pompidou e outros.
Sarfaty passou mais de três décadas longe do Brasil e do circuito de arte do País e, agora, a atual mostra resgata sua obra e busca sua reinserção no contexto artístico atual. “Trazer para a atualidade a quebra de um regime de controle sobre o corpo da mulher, onde não mais se permite a servidão ao outro e sim a si mesma promove uma nova visualidade de prazer. Nas palavras da artista, o que interessa é ‘ser obra aberta aos avessos’ e isso já é uma estratégia revolucionária”, afirma a curadora.
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Gretta Sarfaty navega entre manifestações artísticas diversas, como pintura, performance e fotografia. O corpo da artista é experimentado como território de transformação, paisagem, campo aberto, compreendido como um espaço que afeta tanto movimentos internos como tecidos sociais. As narrativas da subjetividade do ser mulher enquanto sujeito político inventado transbordam para atravessar problemáticas identitárias e ampliar os limites daquilo que se espera da nossa existência.
A pouca visibilidade da produção de Gretta Sarfaty não é um caso isolado diante do silenciamento sistemático de mulheres na História da Arte. É necessário que haja políticas ativas para que a representação feminina possa ser expandida não apenas para mulheres artistas, mas para outrxs sujeitxs que sofrem com a invisibilidade estrutural. O resgate da força feminina como motor de criação é fundamental para superarmos narrativas de opressão, executadas por séculos em diversos níveis, de acordo com gênero, classe e raça. O fato de que a representação feminina se antecipa ao olhar masculino, branco, elitista e ocidental transforma o corpo e a ação da mulher em uma instituição subjugada à do homem. Esse processo enfatiza as conotações políticas da prática de Gretta, uma mulher artista brasileira que constrói a própria imagem, narrativa e identidade.
Esta exposição é um projeto de reinserção de Gretta no contexto artístico atual. O título Dos nossos espaços vazios internos foi inspirado na fala da crítica e historiadora estadunidense Linda Nochlin sobre o motivo pelo qual obras de tantas mulheres artistas se mantiveram sem reconhecimento: “(...) Como todos sabemos, as coisas como estão, e como foram antes, nas artes e em centenas de outras áreas, são estupidificantes, opressivas e desestimulantes para todos aqueles que, como as mulheres, não tiveram a boa sorte de nascer brancos, preferencialmente de classe média e, sobretudo, homens. A culpa não é dos astros, dos nossos hormônios, dos nossos ciclos menstruais, dos nossos espaços internos vazios, mas das instituições e da nossa educação (...)”. (NOCHLIN, Linda. ArtNews. 1971.)
A exposição reúne uma série de obras das décadas de 1970 e 1980, entre elas “A Woman’s Diary” [Diário de uma mulher], “Evocative Recollections” [Lembranças evocativas], “Body Works” [Obras do corpo], “Metamorphic Recollections” [Lembranças metamórficas], que compreendem uma investigação corpórea da artista. Fotografias e pinturas contrastadas em preto e branco apresentam formas de um corpo sem face, o corpo ativado como fronteira que, de acordo com a pesquisadora Talita Trizoli em sua tese sobre a obra de Gretta, trata-se de uma “(...) a constituição discursiva e matérica do corpo em sua especificidade do feminino é atravessada por fluxos ambivalentes de ausência e presença, apagamento e carnalidade” (TRIZOLI, Talita. Atravessamentos Feministas: um panorama de mulheres artistas no Brasil dos anos 60/70. 2018. p. 63).
Em algumas entrevistas, Gretta apresenta uma resistência a toda elaboração que altera o natural significado de suas ações, evitando teorias que esterilizem a prática e a subjetividade presentes em seu processo artístico. Em entrevista a Nadiesda Dinambro para sua tese Imagens de Gretta Sarfaty: fotografia, performance e gênero (2018), a artista revela: “(...) Eu sou muito intuitiva no meu trabalho, eu não gosto de criar em cima de teorias e de coisas. Eu deixo fluir, porque senão ele [o trabalho] perde o sentido, perde a espontaneidade principalmente. (...) Pode acontecer de ser associado por alguma coisa que tem sincronicidade, porque eu estou pensando, alguém tá pensando ao mesmo tempo. Então tem a ver. Eu acho” (DINAMBRO, Nadiesda, Imagens de Gretta Sarfaty: fotografia, performance e gênero. 2018. p. 41). Acatando esse condicionamento da artista, peço licença para enfatizar o contexto em que essas obras foram produzidas para contribuir para a compreensão dessa produção sem diminuir ou acoplar teorias descoladas das obras.
As possibilidades de uma autorrepresentação feminina só começaram a existir durante o século 20, quando escritoras e artistas exploraram do conceito de alteridade feminina às possibilidades subjetivas dadas ao feminino. Gretta enfrenta o sistema hegemônico de representação ao colocar-se como autora da própria imagem, trabalhando o nu feminino por uma perspectiva ativa, permitindo-se ser a própria narradora e articulando-se em voz de dissenso. Selecionamos algumas imagens da série “A Woman’s Diary” [Diário de uma mulher] para apresentar em formato de lambe-lambe tanto dentro da galeria como no contexto urbano do centro de São Paulo e, assim, invadir espaços culturalmente interditados para o sujeito íntimo da mulher. Essa ação promove conscientização e consequentemente transforma o modo como se encara a produção de mulheres artistas em um posicionamento político. Também desenvolve um novo sentido do que é público e altera, assim, o significado da arte na sociedade.
A representação do corpo feminino como uma instituição orgânica e sensualizada é rejeitada nesse recorte, abrindo espaço para dinâmicas sociais e psíquicas que moldam a sexualidade feminina de forma livre. No ensaio “Just Like a Woman” [Como uma mulher] (1986), Abigail Solomon-Godeau explica o redirecionamento da feminilidade para longe do objeto e do próprio corpo, associando o feminino autêntico à produção de significado e subjetividade. As novas iconografias que mulheres artistas como Gretta criaram para a compreensão do corpo, da feminilidade, da autorrepresentação, da opressão e do desejo podem ser entendidas como exercícios de liberdade transformadores em relação a suas expressões pessoais e conceituação do corpo.
Em seu livro História da Sexualidade, o filósofo Michel Foucault explica que “(...) se a repressão foi, desde a época clássica, o modo fundamental de ligação entre poder, saber e sexualidade, só se pode liberar a um preço considerável: seria necessário nada menos que uma transgressão das leis, uma suspensão das interdições, uma irrupção da palavra, uma restituição do prazer ao real, e toda uma nova economia dos mecanismos do poder; pois a menor eclosão de verdade é condicionada politicamente” (FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 1988. p. 10).
Ao se tratar de resistência e de mulheres é fundamental revelar as assimetrias internas de corpos-indivíduos que perfuram o mundo, assistidos por privilégios ou barreiras. Não se pode falar de gênero sem tratar das diferenças de gênero. As relações são variáveis e imprevisíveis, de forma que a história da cultura das mulheres deve ser estudada em suas descontinuidades e especificidades. A criatividade e a desobediência que mulheres nos anos 1960 a 1980 exercitavam ao descobrir seus corpos politizados, ao experimentar formas pouco ortodoxas de criação e expressão artística podem ser vistas hoje por indivíduos de gênero não conformista. Para Gretta, seu processo artístico “(...) era uma procura de identidade e de dizer quem eu era, me assumir como mulher, sem o estereótipo, eu queria me encontrar (...)”. Não se pode definir uma identidade comum para todas as mulheres. Ser mulher não é tudo o que a pessoa é; o gênero não necessariamente tem coerência e consistência; ser mulher não é o suficiente para compartilhar um contexto; identidades não podem ser fixas; somos um sistema aberto que inspira um sentimento de expansão e multiplicidade, resistência e subversão.
Trazer para a atualidade a quebra de um regime de controle sobre o corpo da mulher, em que não mais se permita a servidão ao outro e sim em que se estimule a sujeição a si mesma promove uma nova visualidade de prazer. Nas palavras da artista, o que interessa é “ser obra aberta aos avessos” – e isso já é uma estratégia revolucionária.
// Catarina Duncan