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bruno cançado: jardim


10 ago – 23 set 2017
curadoria marina câmara

  • "O jardim representa um sonho de mundo, que transporta para fora do mundo"
    (Jean Chevalier)

    É preciso partir de uma assunção: os jardins são a imagem por excelência da imposição de poder do homem, neste caso aplicada à natureza. Acreditando que cabe a nós humanos transformá-la ou aculturá-la, demos pouquíssima importância a algo que, no entanto, solapa qualquer distinção entre as partes: o fato de que há, desde sempre, cultura na natureza. Basta estudar os trabalhos da Arte Povera, lembrar do que escreveu Bachelard sobre a real existência de uma correspondência íntima e extraordinária do universo ao homem, ou ler os maravilhosos ensaios de Maurice Maeterlink sobre a inteligência das flores, a vida das abelhas e a vida das formigas, para citar alguns.

    Colunas, relevos – um deles arado –, uma centopeia, uma lasca de asfalto e, finalmente, uma pedra que esmaga a aresta de um cubo de concreto: este é o jardim de esculturas que Bruno Cançado apresenta na ocasião de sua primeira exposição individual na Central Galeria. Um jardim de concreto – tanto branco quanto armado –, cimento e asfalto, mas também de cera de abelha, pedra e madeira.

    Em dois trabalhos foram propostas as formas de pilares ou colunas que, no entanto, ao contrário de se reduzirem aos elementos de sustentação de toda estrutura construtiva, não se erguem simples e perpendicularmente ao solo, mas tendem, de algum modo e ainda que sutilmente, à posição horizontal. Ao criar uma movimentação cadente nos sólidos, Bruno destitui a coluna de sua função e, sobretudo, faz com que este elemento, emblema da civilização, assuma uma inclinação maior para a natureza que para a cultura. Ambas as colunas são de concreto, sendo que uma delas possui uma fenda que a faz pender, enquanto a outra não se sustenta em pé e verte a partir de sua base em direção ao solo. O que mantém esta segunda coluna parcialmente erguida são três outras traves que, não fortuitamente, ao contrário de serem de concreto, cimento ou asfalto, são de madeira, material que é, por excelência, a matéria e que curiosamente no latim, antes de significar matéria, designou a madeira da construção. A tendência à horizontalidade, como bem problematizou Rosalind Krauss em Formless: A user’s Guide, se relaciona ao modo como os animais percebem o mundo sobre o qual se movem tanto eles quanto suas presas. Por ser horizontal, o vínculo que o animal estabelece com o mundo faz com que este seja uma verdadeira extensão de seus sentidos, em especial o tato e o olfato, fazendo com que esta relação seja, por fim, da ordem da sexualidade. Em contrapartida, a posição vertical/ereta seria aquela a partir da qual o mundo é visto, com distância, pelo homem.

    É como se muitas das esculturas aqui apresentadas por Bruno fossem metonímias do paradoxo próprio ao jardim, quer dizer, na materialidade destas peças observamos esforços vãos de prescrever tão somente a geometria.

    Já que na maioria das vezes o jardim foi associado ao paraíso, a algo metafísico, é importante observarmos, no entanto, que este plano celeste, do qual ele seria a imagem terrestre, quase nunca contemplou algo que escapa àquilo que a racionalidade é capaz de apreender. É de Marco Fábio Quintiliano, orador romano do primeiro século dC, famoso por condenar o excesso, a máxima: Haverá coisa mais bela que um jardim arranjado de tal maneira que, seja qual for o ponto de vista do observador, só se descortinam alamedas retas? (E não seria necessário ir tão longe, já que para Le Corbusier o jardim era um meio para a construção de um ambiente organizado, diferentemente do informe circunstante e Burle Marx distribuía as espécies de modo verdadeiramente plástico.)

    Nos jardins perdidos da Babilônia corria uma fonte de imortalidade, na Grécia antiga os jardins eram símbolos da fecundidade eternamente renascente e na Roma antiga lembranças de um paraíso perdido. No Islã, Alá é o jardineiro e segundo São João da Cruz o próprio Deus é um jardim. Se o homem encontra no jardim a expressão de seu poder sobre aquilo que o ameaça por dele escapar – a saber, a inconstância, aquilo que ele mesmo sublima em si para chamar-se homem –, a manutenção do jardim será este eterno labor cuja passagem do tempo tornará inútil.

    O jardim de Bruno se assume, no entanto, enquanto esse (entre)lugar que reúne mais que aparta, em si, cultura e natureza, já que frustra continuamente as tentativas humanas de dar ordem ao caos, impregnando a cultura, finalmente, de volubilidade e da instabilidade que acredita-se serem próprias apenas do que é “selvagem”. Se quiséssemos aproximar o Jardim que o artista aqui criou de algum outro jardim, talvez pudéssemos fazê-lo em relação ao modo ambíguo a partir do qual a cultura asteca o compreendia: capaz de incorporar, na mesma medida, a exuberância da beleza natural e seres temíveis e monstruosidades.

    Não por acaso, o único animal deste jardim é a Centopeia, cuja etimologia remonta tanto à lacraia quanto à escorpião, e à qual Bruno dá a forma de um aqueduto, de um “m” ou de um “n” cujas pernas se multiplicam. Outro emblema da civilização, a letra foi desde muito cedo, assim como o jardim, concebida como uma imagem de algo divino na terra, neste caso, como a materialização da Palavra de um deus. Mas a transcendência que a letra nos permite não é apenas no sentido da revelação e por sorte não nos leva apenas a um plano ordenado, tal como os jardins paradisíacos. Além do mais, a Centopeia de Bruno, não é uma letra, mas um animal. Com efeito, a origem da maior parte das letras é, além de gestos humanos, desenhos de animais e, segundo estudos arqueológicos, o “m” representaria a água e o “n”, uma serpente. Mas fato é que, segundo o próprio artista, acrescentar uma “perna” em seu “m” o transforma em vibração, em som. Ignorando questões lexicais e propondo a transcendência da letra, ele sugere algo muito pesquisado, por exemplo, pelo dadaísta Hugo Ball, a saber, a tomada da letra enquanto “sonora e fonética, primitivista, mais abstrata, mais simplesmente material e concreta, labial e infantil.” Um dos primeiros a realizar ações de leituras em voz alta de seus poemas abstratos e de sua poesia de palavras desconhecidas, Ball procurava renunciar à língua ao passo que reivindicava o retorno à alquimia mais íntima da palavra, difundindo, por fim, o abandono da linguagem: Que a imagem do homem desaparece cada vez mais da pintura do nosso tempo e que a maioria das coisas não existe senão pela sua desintegração, é um presságio a mais sobre o fato de que o rosto humano tornou-se feio e desgastado, e todos os objetos do nosso ambiente, execráveis. Por razões da mesma ordem, o fato da poesia abandonar a linguagem não tardará.

    O abandono da linguagem vem, tal como propõe Bruno, como uma urgência que seu jardim de concreto que tende a ruir já prenuncia. Talvez por isso ele tenha me enviado o VIII Poema de A rosa do povo, de Drummond.

    O poeta
    declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista
    e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
    promete ajudar
    a destruí-lo
    como uma pedreira, uma floresta,
    um verme.

    E ao qual eu gostaria de responder com um trecho de La victoire, penúltimo poema das Calligrammes, de Appolinaire.

    Ó bocas, o homem está à procura de uma nova linguagem
    Sobre a qual o gramático de idioma algum não terá nada a dizer
    E essas velhas línguas estão tão perto de morrer
    Que é realmente uma questão de hábito e falta de audácia
    Que nós delas nos servimos para a poesia [...].

    // Marina Câmara

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