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anna israel: was will das weib?
28 nov 2017 – 20 jan 2018
texto christophe kotanyi
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A Central Galeria tem o prazer de apresentar "Was will das Weib? (O que deseja uma mulher?)", primeira exposição individual da artista Anna Israel. A artista expõe, nessa ocasião, uma série de trabalhos de mídias distintas como objetos, fotografias, colagens e desenhos.
O interesse da jovem artista em descobrir novas formas de expressão se faz evidente em como ela cria associações entre as diferentes técnicas, materiais e ideias que compõem seus trabalhos. Os desenhos, muitas vezes reorganizados tornam-se colagens; diferentes coisas justapostas edificam novos objetos.
A experimentação é um meio que possibilita que novos significados, linguagens e perspectivas apareçam, para que dois elementos díspares se influenciem e acabem por transformar um ao outro num terceiro, único.
"Nesta travessia em direção ao jogo livre das formas, a artista deve sair de seu contexto e de suas referências habituais, como acontece com o estranhamento causado pelos objets trouvés, objetos encontrados pela artista e que, descontextualizados, abrem-se para outras definições, alterando seu estado de dicionário. Nada é o que parece ser. A pedra sabão não é uma pedra. Eu é um outro (Rimbaud)." (Christophe Kotanyi, Berlin, 2017)
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“Uma obra de arte é filha de sua época, e mãe de nossas emoções”
(Wassily Kandinsky)."Arte não é sismografia, arte é o terremoto mesmo"
(Timm Ulrichs)Arte é pesquisa. Pesquisa o quê? Pesquisa formas. É o que podemos perceber nos desenhos de Anna Israel. Pega uma forma, joga com ela, a deforma, a inventa; recebe impulsos de fora e os adapta às suas tentativas e a seus objetivos.
A artista deve tornar-se uma folha em branco, apagar seu quadro negro; para pesquisar isso que estou chamando de forma, é necessário o exercício do esquecimento: da forma que já lhe foi dada, da sua própria forma, ou seja, quem sou eu, o eu recebido, o eu formal, para assim vir a conhecer um eu íntimo, escondido, desconhecido. Isso não só seria um dos objetivos dessa pesquisa artística, mas acredito que também a sua condição inicial. Quem conhece o jogo livre das formas, sabe do que estou falando. Ovo e galinha.
Nesta travessia em direção ao jogo livre das formas, a artista deve sair de seu contexto e de suas referências habituais, como acontece com o estranhamento causado pelos objets trouvés, objetos encontrados pela artista e que, descontextualizados, abrem-se para outras definições, alterando seu estado de dicionário. Nada é o que parece ser. A pedra sabão não é uma pedra. Eu é um outro (Rimbaud).
Agora, por que inventar as formas? Será porque não consigo mais me reconhecer nelas, não consigo mais me exprimir com elas? Tudo se transforma, inclusive as formas. A arte busca aquelas em que nós nos reconhecemos, inclusive as formas que vão dar-nos forma. As formas mortas não se transformam, e também não dá para viver nelas.
Essa arte, então, seria pesquisa formal; pesquisa as formas através das quais nos exprimimos, também fora das convenções onipotentes. As velhas formas carregam essas convenções; já as novas, as frescas, procuram estar livre delas. Falam de nossa necessidade interior, como dizia Kandinsky.
Percebo, nos trabalhos de Anna Israel, uma herança provinda da revolução da abstração, passando pelo cubismo, pelo surrealismo, pela pop-art, pela arte performativa até chegar na colagem: a pesquisa formal mesma.
A colagem opera pelo deslocamento, pela condensação e pelo estranhamento das significações, em analogia com o sonho, como analisou Freud. Cada elemento recebe uma nova significação: um fio elétrico se revela fio de Ariadne. Na colagem, nada é arbitrário, as formas se juntam e se transformam mutuamente, produzindo formas e significações novas, revelando formas e símbolos escondidos nos objetos, mesmo os mais banais, abrindo novas dimensões e perspectivas. Nada é banal. A caixa de ferramentas comum torna-se, assim, objeto misterioso, torna-se pergunta: o que sou? Ariadne: entendemos bem, porém não conseguimos formular em palavras.
Em sua obra, Anna Israel manipula essa nova língua, de maneira que é possível reconhecer, à primeira olhada, a sua assinatura, não só pelo conteúdo, mas pela forma artística mesma, pelo estilo, pelo jeito particular da artista usar o seu estilete. É a voz que reconhecemos entre mil, ainda mais precisa que uma impressão digital. Nesse caso: cor e luz, cores luminosas e luzes descoloridas, o segredo da artista, a sua assinatura, o equilíbrio da paixão, do delírio e da sobriedade, um equilíbrio lábil, o equilíbrio frágil da composição e da inspiração, do cálculo e da espontaneidade, do jogo e do sério, do eu e do não-eu. Isso transforma a língua, a refresca, dá a ela novos conteúdos e novos poderes. Refresca as determinações próprias da artista. Isso seria o sentido do trabalho artístico.
Cada obra da exposição de Anna Israel documenta esse ato de transformação alquímica simultânea.
A artista, ao conseguir a sua própria língua, abre novos caminhos que nos fornecem uma língua fresca, autêntica; autenticidade esta que nos remete àquilo que reside numa possibilidade de resposta para a pergunta nunca respondida formulada por Freud: O que deseja uma mulher? (Was will das Weib?) Será que esse desejo não consiste em justamente ser “si mesma”, inclusive naquele mesmo sentido de inventar seu próprio estilo?
Bom, mas o que significa ser si mesma? É aqui que começaria o trabalho mesmo.
// Christophe Kotanyi
vistas da exposição
enlace
03 out – 18 nov 2017
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A Central Galeria tem o prazer de apresentar “Enlace”, exposição coletiva em parceria com a galeria portuguesa Kubik na qual participam oito artistas, dentre eles os artistas representados pela galeria portuguesa, Martin Derner, Sérgio Fernandes, Rui Valério e Valter Ventura, e os artistas brasileiros, Rafael Alonso, Tatiana Chalhoub e Rodrigo Sassi e Alexandre Wagner.
Enlace é composta por obras que traçam entre si linhas de associações espontâneas. A premissa da exposição não se dá só e estritamente nos paralelos das proximidades entre as obras, mas nos possíveis entrelaçamentos, das semelhanças às dessemelhanças, que tencionam um diálogo, um estímulo ao questionamento acerca das respectivas relações de coexistência nesse espaço. O uso dos mesmos materiais e as diferentes formas que assumem; as abordagens distintas sobre um mesmo tema, como o da temporalidade interrompida que se pode ver em alguns trabalhos dos artistas europeus, por exemplo; e a oposição plástico-conceitual, são só algumas das linhas dentre tantas outras que podemos amarrar.
A não identidade temática e material dos trabalhos, os insere nesse contexto colaborativo dotado de uma ideia de comunicação e contágio entre heterogêneos e a criação de um campo comum, mediante a respectiva particularidade destes.
vistas da exposição
bruno cançado: jardim
10 ago – 23 set 2017
curadoria marina câmara
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"O jardim representa um sonho de mundo, que transporta para fora do mundo"
(Jean Chevalier)É preciso partir de uma assunção: os jardins são a imagem por excelência da imposição de poder do homem, neste caso aplicada à natureza. Acreditando que cabe a nós humanos transformá-la ou aculturá-la, demos pouquíssima importância a algo que, no entanto, solapa qualquer distinção entre as partes: o fato de que há, desde sempre, cultura na natureza. Basta estudar os trabalhos da Arte Povera, lembrar do que escreveu Bachelard sobre a real existência de uma correspondência íntima e extraordinária do universo ao homem, ou ler os maravilhosos ensaios de Maurice Maeterlink sobre a inteligência das flores, a vida das abelhas e a vida das formigas, para citar alguns.
Colunas, relevos – um deles arado –, uma centopeia, uma lasca de asfalto e, finalmente, uma pedra que esmaga a aresta de um cubo de concreto: este é o jardim de esculturas que Bruno Cançado apresenta na ocasião de sua primeira exposição individual na Central Galeria. Um jardim de concreto – tanto branco quanto armado –, cimento e asfalto, mas também de cera de abelha, pedra e madeira.
Em dois trabalhos foram propostas as formas de pilares ou colunas que, no entanto, ao contrário de se reduzirem aos elementos de sustentação de toda estrutura construtiva, não se erguem simples e perpendicularmente ao solo, mas tendem, de algum modo e ainda que sutilmente, à posição horizontal. Ao criar uma movimentação cadente nos sólidos, Bruno destitui a coluna de sua função e, sobretudo, faz com que este elemento, emblema da civilização, assuma uma inclinação maior para a natureza que para a cultura. Ambas as colunas são de concreto, sendo que uma delas possui uma fenda que a faz pender, enquanto a outra não se sustenta em pé e verte a partir de sua base em direção ao solo. O que mantém esta segunda coluna parcialmente erguida são três outras traves que, não fortuitamente, ao contrário de serem de concreto, cimento ou asfalto, são de madeira, material que é, por excelência, a matéria e que curiosamente no latim, antes de significar matéria, designou a madeira da construção. A tendência à horizontalidade, como bem problematizou Rosalind Krauss em Formless: A user’s Guide, se relaciona ao modo como os animais percebem o mundo sobre o qual se movem tanto eles quanto suas presas. Por ser horizontal, o vínculo que o animal estabelece com o mundo faz com que este seja uma verdadeira extensão de seus sentidos, em especial o tato e o olfato, fazendo com que esta relação seja, por fim, da ordem da sexualidade. Em contrapartida, a posição vertical/ereta seria aquela a partir da qual o mundo é visto, com distância, pelo homem.
É como se muitas das esculturas aqui apresentadas por Bruno fossem metonímias do paradoxo próprio ao jardim, quer dizer, na materialidade destas peças observamos esforços vãos de prescrever tão somente a geometria.
Já que na maioria das vezes o jardim foi associado ao paraíso, a algo metafísico, é importante observarmos, no entanto, que este plano celeste, do qual ele seria a imagem terrestre, quase nunca contemplou algo que escapa àquilo que a racionalidade é capaz de apreender. É de Marco Fábio Quintiliano, orador romano do primeiro século dC, famoso por condenar o excesso, a máxima: Haverá coisa mais bela que um jardim arranjado de tal maneira que, seja qual for o ponto de vista do observador, só se descortinam alamedas retas? (E não seria necessário ir tão longe, já que para Le Corbusier o jardim era um meio para a construção de um ambiente organizado, diferentemente do informe circunstante e Burle Marx distribuía as espécies de modo verdadeiramente plástico.)
Nos jardins perdidos da Babilônia corria uma fonte de imortalidade, na Grécia antiga os jardins eram símbolos da fecundidade eternamente renascente e na Roma antiga lembranças de um paraíso perdido. No Islã, Alá é o jardineiro e segundo São João da Cruz o próprio Deus é um jardim. Se o homem encontra no jardim a expressão de seu poder sobre aquilo que o ameaça por dele escapar – a saber, a inconstância, aquilo que ele mesmo sublima em si para chamar-se homem –, a manutenção do jardim será este eterno labor cuja passagem do tempo tornará inútil.
O jardim de Bruno se assume, no entanto, enquanto esse (entre)lugar que reúne mais que aparta, em si, cultura e natureza, já que frustra continuamente as tentativas humanas de dar ordem ao caos, impregnando a cultura, finalmente, de volubilidade e da instabilidade que acredita-se serem próprias apenas do que é “selvagem”. Se quiséssemos aproximar o Jardim que o artista aqui criou de algum outro jardim, talvez pudéssemos fazê-lo em relação ao modo ambíguo a partir do qual a cultura asteca o compreendia: capaz de incorporar, na mesma medida, a exuberância da beleza natural e seres temíveis e monstruosidades.
Não por acaso, o único animal deste jardim é a Centopeia, cuja etimologia remonta tanto à lacraia quanto à escorpião, e à qual Bruno dá a forma de um aqueduto, de um “m” ou de um “n” cujas pernas se multiplicam. Outro emblema da civilização, a letra foi desde muito cedo, assim como o jardim, concebida como uma imagem de algo divino na terra, neste caso, como a materialização da Palavra de um deus. Mas a transcendência que a letra nos permite não é apenas no sentido da revelação e por sorte não nos leva apenas a um plano ordenado, tal como os jardins paradisíacos. Além do mais, a Centopeia de Bruno, não é uma letra, mas um animal. Com efeito, a origem da maior parte das letras é, além de gestos humanos, desenhos de animais e, segundo estudos arqueológicos, o “m” representaria a água e o “n”, uma serpente. Mas fato é que, segundo o próprio artista, acrescentar uma “perna” em seu “m” o transforma em vibração, em som. Ignorando questões lexicais e propondo a transcendência da letra, ele sugere algo muito pesquisado, por exemplo, pelo dadaísta Hugo Ball, a saber, a tomada da letra enquanto “sonora e fonética, primitivista, mais abstrata, mais simplesmente material e concreta, labial e infantil.” Um dos primeiros a realizar ações de leituras em voz alta de seus poemas abstratos e de sua poesia de palavras desconhecidas, Ball procurava renunciar à língua ao passo que reivindicava o retorno à alquimia mais íntima da palavra, difundindo, por fim, o abandono da linguagem: Que a imagem do homem desaparece cada vez mais da pintura do nosso tempo e que a maioria das coisas não existe senão pela sua desintegração, é um presságio a mais sobre o fato de que o rosto humano tornou-se feio e desgastado, e todos os objetos do nosso ambiente, execráveis. Por razões da mesma ordem, o fato da poesia abandonar a linguagem não tardará.
O abandono da linguagem vem, tal como propõe Bruno, como uma urgência que seu jardim de concreto que tende a ruir já prenuncia. Talvez por isso ele tenha me enviado o VIII Poema de A rosa do povo, de Drummond.
O poeta
declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.E ao qual eu gostaria de responder com um trecho de La victoire, penúltimo poema das Calligrammes, de Appolinaire.
Ó bocas, o homem está à procura de uma nova linguagem
Sobre a qual o gramático de idioma algum não terá nada a dizer
E essas velhas línguas estão tão perto de morrer
Que é realmente uma questão de hábito e falta de audácia
Que nós delas nos servimos para a poesia [...].// Marina Câmara
vistas da exposição
a bela e a fera
06 jun – 05 ago 2017
curadoria leda catunda
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A Central Galeria tem o prazer de apresentar “A Bela e a Fera”, exposição coletiva sob a curadoria da artista Leda Catunda, na qual participam 8 artistas: Bruno Dunley, Edgard de Souza, Erika Verzutti, Luiz Roque, Mano Penalva, Paulo Monteiro, Pedro França e Sofia Borges.
A exposição reflete as mudanças no conceito sobre o belo e o feio nos dias de hoje. A ideia de beleza, poucas vezes na história, foi tão chacoalhado e tão velozmente transformada como agora. A enorme proliferação de imagens promovida pela internet e mídias sociais transformou a todos em fotógrafos e repórteres de nossa própria jornada. Assim sendo, torna-se impossível a tentativa de unicidade em torno da ideia de bom gosto. Muitas coisas interessantes se tornaram belas e muitas coisas belas se tornaram estranhas em sua pretensão de universalidade. O contexto cultural e político nunca alcançou tanta importância e parece natural, considerando o acesso às mais diferentes culturas que estão espalhadas pelos quatro cantos do mundo. A beleza agora é informada. O feio também, quase tudo que já foi considerado feio agora pode ser igualmente belo, dependendo do ângulo sob o qual se pretende enxergar. O feio, assim como a beleza sofre atualmente violentas alterações dependendo do contexto, como por exemplo: a feiura da injustiça, à qual associamos a noção de maldade.
A exposição revela como os artistas, partindo de sua visão subjetiva, lidam com os atuais conceitos do belo e do feio através de pinturas, fotografias, desenhos, objetos e vídeo. A mostra é dividida ao meio, na primeira sala estão os trabalhos considerados, de acordo com os critérios adotados por cada artista, como belos e numa outra sala, estão os trabalhos denominados feios.
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A Bela e a Fera e o desejo do mundo
O mar do Caribe é lindo, ninguém pode negar. Ainda que nunca se tenha ido até lá – e a imensa maioria de nós nunca foi e nem nunca irá – mesmo assim, dá para ver pelas fotos e vídeos. O azul, azulzinho... Ou melhor, as três faixas horizontais de cor, a areia branca, o azul esverdeado da água em contraste com o azul intenso do céu com sol, a figura dos coqueiros debruçados sobre o mar. A transparência da água parece se destacar como signo fundamental na composição geral. Na cena toda, a transparência parece sugerir a possibilidade de uma existência especialmente leve e suave, num mundo cálido, envolvente e acolhedor. Há uma sugestão de paraíso na terra, além da associação comum que relaciona o estado de felicidade ao contato direto com a natureza, gerada por uma sensação de pertencimento ao planeta, muito comum entre os surfistas. Dentre os motivos que contribuem para o enaltecimento da imagem do mar do Caribe como algo inegavelmente belo está o seu caráter irreal, se pensarmos do ponto de vista do modo como vive a maioria das pessoas. Desde meados do século XIX, populações acumulam-se nos grandes centros urbanos, vivendo em espaços exíguos, privadas de qualquer possibilidade de avistar o horizonte ou até mesmo de ver o céu, a não ser por estreitas brechas entre os edifícios. O contraste das realidades certamente favorece a associação positiva, reforçada pelo aspecto exótico daquela paisagem.
Interessa pensar em que momento e sob quais circunstâncias na existência, na infância ou juventude, o belo incide sobre nós, quando o enxergamos pela primeira vez, numa determinada experiência, e somos assim tocados pelo desejo. Uma vez capturados, nos tornamos eternamente reféns da visão que despertou o desejo. Esta passa a ocupar um lugar privilegiado na memória, impulsionando toda sorte de ações no intento de promover a reprodução da experiência. O que há no signo do belo que tão fortemente desperta o desejo, que nos coloca num leve estado de transe, uma espécie de hipnose, e permanece constantemente atraindo atenção? Para além da imagem do mar azul claro e transparente, aqui também poderiam estar pessoas, o rosto da pessoa amada, múltiplos elementos da natureza ou mesmo melodias. Assim como as imagens, sons podem alcançar um alto nível de encantamento. Ainda, outros incontáveis contextos, incluindo narrativas, estórias ou mesmo vagos estados espirituais podem ser geradores da experiência de beleza. Muitas vezes a complexidade do evento se efetiva pelo fato de estarmos geralmente absortos em funções cotidianas, desprevenidos do porvir, quando somos subitamente capturados pelo belo. O inesperado agrega à experiência um caráter de exaltação, na promoção de um instante glorificado, de um momento sublime com o poder de nos remover da mesmice do esforço diário, numa elevação vertiginosa para um estado especial, condição sui generis. Estado de consciência ampliada na noção clara de que de fato existem mais coisas para além da racionalidade, uma espécie de comprovação efetiva do mistério.
Os componentes necessários para a ignição do belo estão certamente dentro de cada pessoa, relacionados a seu histórico pessoal e cultural. Atualmente, o que é belo para uns não vale para outros, não sendo mais, de modo algum, um conceito-chave, como valido para os teóricos do século XVIII. Alguns signos mais potentes como a lua cheia ou o pôr-do-sol ainda podem servir como noção de beleza comum, no entanto qualquer tentativa mais séria de unificação do gosto tende a falhar. Muitas coisas interessantes se tornaram belas e muitas coisas belas se tornaram estranhas em sua pretensão de universalidade, como por exemplo: a pessoa bonita. A beleza padronizada pela mídia nas últimas décadas está desgastada e a classificação de belo hoje abandona a noção naif de modelo. Não há mais modelo a seguir, o contexto é o que importa. O contexto cultural e político nunca antes alcançou tanta importância e parece natural que assim o seja, uma vez que se considere a irreversibilidade do acesso às mais diferentes culturas espalhadas pelos quatro cantos do mundo. A beleza agora é informada. O feio também, quase tudo que já foi considerado feio agora pode ser igualmente belo, dependendo do ângulo pelo qual se pretende enxergar.
O conceito de feio, assim como o de beleza, sofre atualmente violentas alterações dependendo do contexto, como por exemplo: a feiura da injustiça, à qual associamos a noção de maldade. O feio, muito mais do que uma imagem feiosa, parece estar ligado a sensações ruins, valores éticos e morais, podendo ser também o tedioso, o enjoativo, como uma forma de castigo visual de algo que nunca muda e se repete eternamente.
***
Ser artista é concentrar energias e organizá-las em torno de uma intenção única, ligada à criação. Fazer escolhas para afinar essa intenção é o desafio básico do percurso, para assim definir o que se pretende realizar e como fazê-lo. Escolher é abandonar, deixar para traz o que não interessa e arriscar apostando numa visão particular e pessoal do mundo e da existência. Ainda que esta visão pareça uma verdade improvável, é necessário correr o risco de errar para poder acertar. É fundamental potencializar a poética, torná-la contundente, eficaz, ou seja, produzir arte com qualidade, entre tentativas, cálculos e elucubrações, estabelecimento de critérios e escolhas. Desta forma o artista organiza o desejo do mundo. Lidar com o desejo em geral – o próprio e o de todos – é lidar com o apetite do mundo, ânsia pulsante e inexorável por mudanças, transformação continuada para a obtenção de satisfação, deleite, sonho, prêmio, realização, redenção ou o que seja.
Numa suposta atribuição momentânea de poderes especiais ao artista, poderíamos considerar que ele possa, a um só tempo, enxergar dois mundos distintos. Lançando um olhar para o mundo real, como ele é, somando-o a outro, um segundo mundo imaginado e aperfeiçoado a sua maneira. O artista então se torna capaz de, através deste olhar duplicado, antecipar uma coleção própria de futuros possíveis, projetando imagens inéditas de seu universo próprio naquilo que produz. Futuros possíveis, em que desejos e realidades se misturam, beleza e feiura se confundem e se transformam, oscilando em favor de uma efetiva renovação do real.
// Leda Catunda
vistas da exposição
gabriela mureb: rrrrrrrrrr
04 abr – 27 mai 2017
curadoria juliana gontijo
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A Central Galeria tem o prazer de apresentar a primeira exposição da artista carioca Gabriela Mureb em São Paulo. Sob curadoria de Juliana Gontijo, a exposição intitulada “Rrrrrrrrrr” é composta por uma série de máquinas alteradas, motores, vídeos e desenhos que evocam experiências limítrofes do corpo – humano e maquínico – e da linguagem.
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Leitmotiv para rrrrrrrrrr
Juliana GontijoEnergia e momento são o que de fato regem a relação entre todas as coisas conhecidas. Há, por assim dizer, uma diferença quase nula entre seres animados e inanimados: tudo e todos, em algum ponto e em diferentes escalas, estão sujeitos a ciclos de organização, funcionamento, reação e ruína. As aspirações dos corpos, as transpirações das máquinas, os tremores maxilares, o balbucio ruidoso da matéria inerte se tratam, no final das contas, de diferentes modos de agenciamentos que conformam uma orquestra complexa, na qual soam acordes de potência, força e entropia.
Gabriela Mureb, em rrrrrrrrrr, expõe uma série de motores, máquinas alteradas e vídeos que evocam experiências limítrofes do corpo – humano e maquínico – e da linguagem, ou do que é humanamente incompreensível ao ponto de insuportavelmente incômodo. rrrrrrrrrr é um título-onomatopeia que faz referência ao som gutural, dificilmente pronunciável, que anuncia um momento disfuncional da linguagem e da perda de sentido. O ruído se torna aqui o ponto de conexão entre regimes heterogêneos – metal, borracha, carne –, a partir do qual as máquinas ganham a improdutividade do funcionamento ilógico, a fala não se pronuncia, os movimentos corporais são involuntários e a produção de fluidos, automatizada.
A montagem das obras no galpão semi-industrial da Central Galeria buscou seguir o ritmo da orquestração das coisas vivas e mortas em que a soma dos potenciais particulares cria uma espécie de estado geral – uma partitura de intensidades –: correias e motores à gasolina afrontam grandes planos em vídeo de balbucios corporais. A língua suga a correia, a graxa lubrifica aberturas guturais e reentrâncias gustativas. A máquina é uma potência que tensiona na delicadeza violenta do cálculo e do caos.
Estes campos dissonantes, em mútua reverberação, causam um estranhamento familiar que deixa rastros de destruição e declínio, porém, ambiguamente, de reconstituição e reconhecimento no desconhecido. Desse confronto, portanto, emerge um ato de amparo, que transforma o sem-sentido em potência iniciática do não-dito, e o borrão em hieróglifos de uma ordem de cooperação ainda não conhecida.
vistas da exposição
duas naturezas
18 jan – 18 mar 2017
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A Central Galeria tem o prazer de apresentar “Duas Naturezas”, exposição coletiva na qual participam 7 artistas: Gisele Camargo, Bruno Cançado, Simone Cupello, Simone Moraes, Flora Rebollo, Alexandre Wagner e Marco Maria Zanin.
A exposição procura relacionar a ideia de dualidade e de ambiguidade presentes nas obras selecionadas, seja no processo de trabalho desses artistas (na escolha de materiais e de procedimentos) e/ou no resultado apresentado.
Alguns trabalhos expostos são de uma natureza misteriosa, já que as imagens retratadas em pinturas ou desenhos, não se revelam imediatamente e nem por completo. Elas guardam em si uma espécie de enigma e ficam abertas para inúmeras leituras. Essa flexibilidade de interpretação dá ao espectador a liberdade de identificar nestas obras aspectos ligados à um repertório pessoal. Essas imagens carregam um certo grau de ambiguidade, já que muitas vezes elas transitam entre a abstração e figuras identificáveis e nomeáveis, mas sem necessariamente se enquadrar em uma categoria. Este é o caso das pinturas de Alexandre Wagner, Gisele Camargo e dos desenhos de Flora Rebollo.
A natureza aparece em alguns trabalhos de formas distintas, às vezes como matéria-prima e outras, como resultado estético. Simone Moraes busca aliar em sua pesquisa elementos da natureza (como terra, folhas, espinhos, etc.) com ações performadas por ela. Em um dos trabalhos exibidos, a artista cria um conjunto de objetos feitos a partir de papéis amassados e cobertos com cera. Ao mesmo tempo em que o gesto no papel é bem marcante, a cera faz com que esses objetos adquiram formas orgânicas. Eles deixam de ser papéis e se tornam abstratos. Essa dualidade também aparece no trabalho de Simone Cupello, mas a artista tem um outro ponto de partida: fotografias antigas. Ela se apropria e as utiliza como matéria-prima, que depois de aglutinadas e esculpidas se transformam em pedras. As imagens das fotografias, que já foram registros particulares e afetivos de pessoas em algum outro tempo, dão lugar a objetos inusitados, como um retorno à natureza. Contudo, a potência da memória de uma pessoa ou de uma época continua ali presente, quase como encapsulada para a eternidade.
Outros artistas da exposição, partem de elementos mais urbanos em suas pesquisas. Nos trabalhos apresentados por Bruno Cançado, o concreto é a matéria-prima principal. Eles se relacionam diretamente com o espaço e o gesto do artista é sempre bem registrado. As obras expostas sugerem certa maleabilidade à rigidez do concreto, dando a eles uma leveza inesperada. Já Marco Maria Zanin, se apropria de entulhos através de uma incessante busca pela cidade de São Paulo. O artista italiano cria então composições deslumbrantes em seu trabalho fotográfico. A primeira associação que se faz é com as tradicionais pinturas de natureza-morta mas as camadas de significados vão muito além da imagem e da composição estética. As fotografias também funcionam como uma espécie de catalogação de resquícios de demolição encontrados e guardam a memória de uma cidade que está em constante construção e destruição.
“Duas naturezas” realça a dualidade presente nas imagens, nos gestos, nas relações, nos conceitos, na cidade, na natureza e em tudo que está ao redor.