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bruno cançado: a menor distância


06 ago – 24 set 2022
texto agnaldo farias

  • A Central Galeria tem o prazer de apresentar A menor distância de Bruno Cançado. Em sua segunda exposição individual na galeria, o artista de Belo Horizonte apresenta trabalhos tridimensionais inéditos em que emprega materiais diversos como terra de cupinzeiro, cimento, resina, adobe, concreto, madeira, aço e bronze. A mostra é acompanhada de um texto crítico assinado por Agnaldo Farias.

    O trabalho de Bruno Cançado intersecciona arquitetura, ecologia e epistemologia. Baseando-se no conhecimento empírico de construir – seja da arquitetura vernacular ou da construção em escala industrial –, sua obra culmina em uma mistura de temporalidades e elementos, que vão do natural ao manufaturado, do artesanal ao erudito. “Bruno aventura-se pela cidade em busca do que não sabe, mas que reconhece tão logo encontra, seja algo realizado pelo exercício puro da inteligência quando açulada pela necessidade de improviso, pela carência de recursos, seja pelo encontro de coisas que atuam como gatilho da sua capacidade de estabelecer conexões entre coisas díspares”, observa Agnaldo Farias. “O artista interessa-se por suas serventias, pelos destinos que justificaram suas presenças no mundo, pelos sentidos que lhes foram e são atribuídos no decorrer do tempo.”

    Bruno Cançado nasceu em Belo Horizonte em 1981. Mestre em Artes Visuais pela Cornell University (Ithaca, EUA, 2019), graduou-se em Artes Plásticas pela UEMG (2010) e em Comunicação Social pela PUC Minas (2003). Participou de diversas residências, como Lighthouse Works (Fishers Island, EUA, 2019), Fine Arts Work Center (Provincetown, EUA, 2014-2015) e Fundação Bienal de Cerveira (Portugal, 2014), entre outras. Entre suas exposições, destacam-se as individuais em: CCBB-BH (Belo Horizonte, 2021), Central Galeria (São Paulo, 2017), AM Galeria (Belo Horizonte, 2016) e Hudson D. Walker Gallery (Provincetown, 2015), entre outras. Seu trabalho integra as coleções do MAC Niterói e do Museu de Arte do Rio.

  • Pequeno tratado sobre a engenhosidade

    Em minha primeira e até agora única visita ao atelier de Bruno Cançado, uma sala inverossivelmente plana, situada no piso térreo de um prédio construído numa das ruas escarpadas de Belo Horizonte – quem não é de lá estranha esse urbanismo afeito a ladeiras abruptas –, chamou-me a atenção uma construção tosca feita de ripas de madeira nuas e gastas. Era dotada de um desenho intrincado, rebuscado e assimétrico: um cavalete triangular servindo de suporte para uma estrutura quadrangular, compondo um conjunto aparentado com essas escadas metálicas domésticas que de quando em quando despertamos de seu sono de objeto no interior de um box de banheiro desativado ou num canto pouco frequentado da nossa área de serviço, para a levarmos de um lado a outro da casa para o cumprimento de uma dessas tarefas ordinárias mas inacessíveis ao corpo desarmado, como trocar uma lâmpada, retirar uma mala do alto do armário etc. É comum haver no topo dessas escadas uma espécie de degrau mais largo, um plano com a dupla função de servir como área de trabalho, onde, por exemplo, depositamos a lâmpada mencionada, e como travamento da estrutura da escada, dispensando a presença acessória da pessoa que tempos atrás tinha a função de segurá-la, garantindo a segurança e a confiança de quem nela ia subindo. Pois era isso mesmo, tratava-se de uma escada, uma simples escada encontrada num canteiro de obras, feita por algum pedreiro/marceneiro hábil e rápido, empenhado na resolução de um problema simples, ou seja, imbuído do pragmatismo próprio aos desafios corriqueiros. E com que inteligência formal, com que economia de meios! Foi o que Bruno imediatamente notou. Não sei como obteve a escada. Se a comprou, se a encontrou numa caçamba como sobra de construção, se o interesse pela peça provocou alguma reação nos profissionais do canteiro. Não sei de nada e prefiro prosseguir no mistério. Sei que a levou ao seu atelier e hoje figura nessa sua nova exposição individual na Central Galeria, quase que na condição de sua protagonista, na verdade, parte de uma obra de dois metros de altura, composta por três partes, além dela própria.

    Cumpre observar que a escada tem 1 metro e 39 centímetros de altura e 55 de profundidade, aproximadamente. A irregularidade de sua geometria aliada à correção imprevista de suas proporções convertem-na numa legítima escultura, descendente direta da vertente construtiva, não do ramal abstrato geométrico e sua regularidade às vezes obsessiva, herdeira da respeitável tradição das “ordens arquitetônicas”. A escultura encontrada por Bruno, apropriada por ele e articulada a outras de modo a perfazer uma estrutura compósita, pertence à “razão torta”, aquela que afronta acintosamente a simetria, que segue a lição do estilista Yohji Yamamoto, enunciada no filme que Wim Wenders dedicou a ele – Anotações sobre cidades e roupas (1989): “A simetria é feia. As mãos humanas, as ações, não são simétricas”. Frase que faz coro com o poema de Guillaume Apollinaire: “Sejam indulgentes quando nos compararem / Aos que foram a perfeição da ordem / Nós, que buscamos em toda parte a aventura”.

    A poética de Bruno Cançado afina-se com a agudeza da percepção de um Celso Renato, cuja matéria-prima eram os retalhos de madeira que a cidade lhe oferecia, com a disponibilidade de Hélio Oiticica para com o mundo, de que são prova seus Bólides e Penetráveis, enfim, diz respeito a todo aquele que reconhece a inteligência onde quer que ela se manifeste, sobretudo aquela que acontece fora do âmbito da educação formal, dos padrões curriculares, patente na excelência dos sambas de Nelson do Cavaquinho ou Cartola, na pintura irretocável da fachada de uma casa simples, apreendida por Anna Mariani, nas esculturas do Véio, nas pinturas sobre a megalópole que Agostinho de Freitas, pintor peripatético, fazia enquanto perambulava por dela.

    Bruno aventura-se pela cidade em busca do que não sabe mas que reconhece tão logo encontra, seja algo realizado pelo exercício puro da inteligência quando açulada pela necessidade de improviso, pela carência de recursos, como é o caso da escada, seja pelo encontro de coisas que atuam como gatilho da sua capacidade de estabelecer conexões entre coisas díspares. Galhos, cipós, vergalhões, pedaço de chão, instrumentos variados – martelos, marretas, tijolos –, arames e cordas para amarrar coisas com coisas. Tudo vale, tudo pode potencialmente interessar, e efetivamente presta-se à confecção de estruturas estranhamente desconexas, sintagmas sincopados.

    Afora as qualidades materiais, que examina como quem saboreia as particularidades de objetos, provenham eles diretamente da natureza ou sejam eles processados artesanal ou industrialmente, o artista interessa-se por suas serventias, pelos destinos que justificaram suas presenças no mundo, pelos sentidos que lhes foram e são atribuídos no decorrer do tempo.

    A escada, por conta de sua presença corriqueira e naturalizada, em que pese seu prosaísmo faz-nos esquecer que sua gênese ultrapassa o atendimento de necessidades comezinhas e remonta ao desejo atávico de se elevar a um plano além do da nossa altura. Na escultura tetrapartida apresentada, a escada serve de apoio para um outro elemento: um arco de concreto armado. Seria preciso aludir ao passado do arco na arquitetura, a grande invenção dos romanos, sua significação em termos estruturais aperfeiçoando o sistema trilítico (dois pilares e uma viga). Diante da exiguidade do espaço disponível, isso não será possível. Para o que importa aqui, na peça proposta por Bruno, o arco, célula mater da abóboda, conduz à noção da arquitetura e sua relação com o céu, a abóbada celeste rebaixada e reduzida à nossa escala. Fechando-se a 2 metros de altura, o triunfo do arco, visto de perfil um magro repuxo cinza, reduz-se a 55 centímetros de profundidade, ainda assim ensejando o atravessamento por debaixo dele, mas com os olhos, não com o corpo, incompatível com sua largura estreita. Prosseguindo da madeira para o concreto, do lado de lá da peça o arco arremata-se em três vasos cerâmicos, por sua vez arranjados em uma pilha de tijolos igualmente cerâmicos, tijolos vazados, desses encontráveis em tudo quanto é canteiro de obras do nosso país.

    Madeira, concreto, barro empilham-se num exercício de arquitetura, uma assemblage antípoda à frialdade minimalista, embora rigorosa e carregada de lógica empírica e ações, mas igualmente estofados de memória e sugestões. Como a escada e o arco, também os vasos de barro, recipientes de terra, mudas e sementes, cujo formato cônico dispõe sobre o crescimento das plantas, compartilham do mesmo impulso para o alto. Sobre os vasos os tijolos cerâmicos, outra possibilidade aberta a esse material graças ao prodigioso tratamento dele pelo fogo, o que garante que ele tome de empréstimo algo da dureza das paredes de pedra. A soberba arte da cantaria produz paredes exatas e duradouras, ao contrário das paredes de tijolos que, do lugar de fabrico até o transporte para o local de construção, se vão esfarelando. A rigidez do tijolo cerâmico dispensa o corpo maciço do tijolo ordinário; em seu lugar vêm, neste caso, as 12 aberturas rigorosamente alinhadas em três grupos, dotando as paredes de alvéolos contínuos que facultam a passagem de fios, conduítes e ar, o que confere às paredes das casas uma leveza oculta. O artista explora esses atributos de duas maneiras: justapondo os tijolos, jogando com sua opacidade e semitransparência constitutivas; e empilhando-os – o empilhamento, gesto ancestral, como ponto de partida simultaneamente de toda arquitetura e da própria constituição do ser. Afinal, somos o que somos porque empilhamos. Não é isso o que nos ensinam as cariátides, os pilares antropomórficos, com suas feições femininas e verticalidade humana? Um par de nós, encimado pelo céu, constitui um umbral. E com isso voltamos ao sistema trilítico, e com isso chegamos ao encantamento do artista por colunas, mote da série de obras intitulada Coluna-pilha.

    Já houve quem tenha defendido a ideia de que mesmo o ser humano mais desprovido de ideias construtivas é melhor que qualquer abelha. E o é pelo simples fato de a abelha obter a única arquitetura que por instinto lhe é dado a fazer, perfeição limitada e lacônica, enquanto o ser humano carrega dentro de si a ideia de arquitetura, noção que ele submete ao material que tiver pela frente.

    Coluna-pilha alude a dois princípios interligados: 1. o gesto humano de replicar diante de si o próprio corpo, a verticalidade de seu corpo; 2. o que ele obtém empilhando pedaços regulares de material, no caso pedaços cilíndricos de matérias diversas, como concreto, minério de ferro, cimento, madeira, adobe, seixo rolado, tronco de árvore. Material in natura ou material devidamente processado, não importa. O artista vale-se de todo material para compor sua gramática, vale-se até de materiais moldados em outros materiais, como o cilindro feito de concreto enformado num cesto de fibras trançadas, e que deixa estampada em sua superfície a lembrança desse encontro. As colunas vão crescendo por meio dessas adições, assediadas aqui e ali por defeitos próprios e ações desequilibradoras, como a cunha de madeira que se impõe entre uma emenda e outra, como a pedra que compensa o corte chanfrado do cilindro, impedindo-o de cair. Fazemos o que é possível, vamos construindo e nos construindo na razão de uma ânsia insaciável, até que o edifício venha abaixo, até que acabemos como pobres escombros. Seja como for, nos reergueremos, diz o artista. Ao menos é o que parece dizer a série Relevo-cupim. Pedaços quadrangulares de chão levantados e afixados na parede com a textura típica dos cupinzeiros, estes, por sua vez, com seus ninhos que chegam a atingir nove metros de altura, resultam do mesmo incompreensível esforço ascensional. Erguem-se com rapidez, realizados pela mistura de saliva, excrementos e terras; uma construção sólida, preparada para enfrentar intempéries e predadores, não obstante porosa, aberta ao entorno pela via de seus infinitos e diminutos orifícios. O artista apresenta-os como fragmentos intensamente vivos, organismos pletóricos se irradiando.

    Agnaldo Farias
    Agosto, 2022

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