31 maio – 30 julho 2022
curadoria ludimilla fonseca
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A Central Galeria apresenta Nunca foi sorte, exposição coletiva com curadoria de Ludimilla Fonseca que explora noções de meritocracia, a partir das pesquisas das/dos artistas Allan Pinheiro, Ana Hortides, Fábio Menino, Gabriella Marinho, Gustavo Speridião, Janaína Vieira, Leandra Espírito Santo e Marta Neves.
Apresentando trabalhos configurados a partir de visões e vivências do aqui-agora, o projeto aborda questões como a da “precariedade enquanto realidade inevitável”, do “sucesso como providência divina” e do “empreendedorismo como salvação”.
“Trata-se de um exercício curatorial que justapôs conceitos e impressões decantados de cada um dos repertórios artísticos, a fim de que a reunião das obras no espaço expositivo produzisse uma imagem de coletividade”, comenta a curadora.
A maioria dos trabalhos são inéditos e giram em torno de ideias como precariedade, hierarquização, mercado de arte, subúrbio, vernissage, propaganda, meme, plano, ironia e decepção. Assumindo, assim, uma certa confusão entre artes visuais, comunicação social e cultura material no neoliberalismo. “A estrutura social, com toda sua complexidade e desigualdade, está reduzida a uma questão de foco, fé e força”.
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A expressão “a sorte está lançada” teve origem nos jogos de dados na Roma Antiga, mas entrou para a história quando foi dita pelo imperador Júlio César. Na época, o rio Rubicão ficava no limite entre o território governado por César e a área comandada pelo cônsul Pompeu. Para atravessar o rio, era necessária uma autorização. Foi então que, já às margens do Rubicão, o general declarou: “A sorte está lançada!”. Tratava-se de uma declaração de guerra. O conflito só terminou quando César tomou o poder em Roma e se declarou ditador vitalício. Ou seja, nunca foi sorte. Sempre foi guerra.
Esta exposição joga com a noção da meritocracia no atual contexto do Brasil, no qual o conceito está coroado como profecia. A justaposição entre capitalismo e uma certa religiosidade cristã é muito antiga, e suas atualizações mais recentes correspondem às convicções de “precariedade como realidade inevitável”, indissociabilidade entre “sucesso e graça alcançada” e “empreendedorismo como salvação”. A estrutura social, com toda a sua complexidade e desigualdade, está reduzida a uma questão de foco, fé e força.
Todas as obras apresentadas se configuram a partir de questões e formas do aqui-agora, e a maioria delas é inédita. Assim, mais do que um efeito de conjunto, a reunião destes trabalhos produz uma imagem de coletividade. Indagando sobre origem e classe social, trabalho e consumo, casa e corpo, estas/estes artistas assumem a confusão entre artes visuais, comunicação social e cultura material no neoliberalismo.
Elas/eles compartilham experiências e questionamentos, ainda que partindo de contextos diferentes. Desse modo, existem certos consensos permeando a exposição: pesquisa e produção artísticas são trabalho; diálogo entre artistas é de classe, antes de ser formal e/ou conceitual; galeria é um espaço de negociação; curadoria é sempre um freela: tudo que está aqui está em jogo e à venda.
O projeto foi pensado como um exercício curatorial que não fez proposições, mas reuniu conceitos e impressões decantados de cada um dos respectivos repertórios artísticos: precariedade, estética, construção, mercado de arte, subúrbio, vernissage, propaganda, meme, plano, ironia e decepção.
Nas pinturas de Fábio Menino, o espaço pictórico está concentrado nos objetos, apontando para a relação entre trabalho e consumo. As mãos aparecem pela primeira vez na produção do artista, evidenciando uma decupagem dos gestos do trabalhador. Em uma concepção dialética, esse corpo segmentado está subordinado ao condicionamento decorrente do trabalho repetitivo e, mais recentemente, da mediação digital.
Corpos automatizados reproduzindo gestos mecânicos são o laboratório de Leandra Espírito Santo. Se, por um lado, sua pesquisa enfatiza, por exemplo, que emojis são reduções icônicas de uma performatividade praticada há décadas, por outro, a provocação está na sugestão de que é a expressão corporal que pode ter sido reduzida aos ícones dos celulares.
Em termos de comunicação, Marta Neves é uma mestra da ironia. A artista já explorava a lógica do meme antes de ele ser um verbete no dicionário. Nestas obras inéditas, ela não levanta bandeiras: discute menos sobre protestos e mais sobre exercícios constantes de resistência. É menos sobre envelhecer e muito mais sobre emburrecer, perder a cor, perder a graça.
E o trabalho não termina quando chegamos em casa. Partindo de uma investigação sobre memórias e ausências, Ana Hortides lida com as relações entre casa, corpo e origem. Embrenhando nas estruturas, seus novos trabalhos exploram os materiais e as relações sociais que constituem a construção de casas. E, desse modo, o contexto do lar é expandido para o local em que ele se situa: o subúrbio.
O cotidiano periférico está no centro da pesquisa de Janaína Vieira. A artista iniciou sua trajetória trabalhando com colagens, e, atualmente, a noção de “recorte” sustenta uma reflexão sobre demografias. Questão sobreposta, a infância na favela também é um tópico fundamental: noções de pertencimento, escalada e visibilidade em concomitância ao crescimento das crianças. Pela primeira vez, Janaína apresenta assemblages, nas quais a escolha de cada objeto carrega a ambivalência entre a liberdade imaginativa da infância e a imposição violenta do controle social.
Instituição especializada no quesito acima, a polícia brasileira é um símbolo contraditório de insegurança e medo. E Allan Pinheiro desmantela essa corporação. O procedimento de deslocar e desmanchar materialidades institucionalizadas diz respeito à recusa das hierarquizações, contestando a noção de que determinadas pessoas pertencem a contextos específicos e não devem se misturar. A principal atividade da polícia é essa: impedir que certos sujeitos circulem e avancem, ainda que isso signifique encarceramento e assassinato em massa.
Gabriella Marinho está interessada exatamente naquilo que persiste apesar das sistemáticas tentativas de apagamento. Trabalhando com o barro, ela materializa ancestralidades e investiga questões da memória coletiva conectada ao território. A artista está atenta àqueles elementos religiosos que escapam da intolerância por estarem enraizados em suas comunidades. Uma resistência que é cosmogônica e, portanto, poderosa em escapar dos sofisticados e constantemente renovados mecanismos de catequização e genocídio.
Encarando esses abismos, o trabalho de Gustavo Speridião é um testemunho sobre a inerência entre o sistema das artes (configurado a partir da história e do mercado) e regimes político-econômicos (constituídos pelo mesmo binômio). Sendo assim, a obsessão de sua pesquisa sobre os planos na pintura é simétrica aos seus infindáveis processos investigativos e imaginativos acerca de planos revolucionários.
Enfim, antes era o ditado “Deus ajuda quem cedo madruga”. Agora, é a hashtag “nunca foi sorte, sempre foi Deus”. Ambos são mantras repetidos em uma estrutura na qual classismo, racismo, machismo, etarismo e intolerância religiosa são entendidos como “o jeito como as coisas são”. Em meio a camisas com o logo “fé”, sessões com coaches, muita positividade, novos tratamentos para síndrome de impostor e yoga, seguimos correndo atrás de cada drink na piscina, cada boleto pago, cada sessão de terapia, cada look de milhões, cada convite para uma exposição, cada jantar com curador, cada obra vendida. Trabalhe enquanto eles dormem. Reze enquanto eles tiram férias.
Exemplo que permeou o desenvolvimento deste projeto foi o episódio que aconteceu com o jogador de futebol Paulinho. Ao final dos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021, ele postou uma selfie vestindo a camisa da Seleção Brasileira e segurando a medalha de ouro. Na legenda, escreveu: “Nunca foi sorte. Sempre foi Exu”, trecho da música “Eminência Parda” do cantor Emicida, com participação de Dona Onete, Jé Santiago e Papillon. A repercussão foi enorme. Tanto no que diz respeito aos comentários de ódio como em relação às respostas de identificação e apoio. Esse acontecimento reitera que nunca foi sorte, nunca foi deus, muito menos esquema tático. Sempre foi racismo, luta de classes e perrengue. A tal da guerra.
// Ludimilla Fonseca
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